Sobremesa
Não era nenhuma data especial, ela simplesmente acordou querendo que fosse... Para tanto, decidiu que de tarde não iria trabalhar. Faria uma escova no cabelo, uma depilação mais ousada e, se desse tempo, massagem com óleos aromáticos. O mesmo capricho dedicou à arrumação da sala, particularmente a mesa, que mereceu finalmente receber as louças, cristais e talheres herdados de sua mãe e que raramente têm autorização para saírem do armário. Um vinho italiano foi parar na geladeira e um cd cuidadosamente escolhido estacionou no aparelho de som no estado de pause. Depois de preparar o jantar a Clotilde se preparou para o jantar...
– Ué... Onde estão as crianças? – Pergunta o Afonso, nem bem guardando a pasta, assim que chegou do trabalho.
– Foram dormir na casa da minha mãe. – devolve a Clotilde, com voz enigmática.
– Uhmmm... – murmura o Afonso, curioso ao perceber a sala toda arrumada e tentando, desesperado, encontrar alguma pista que o fizesse lembrar que raio de data deveriam comemorar naquele dia. De especial, que soubesse, só o seu time que jogaria depois da novela, valendo a classificação para a próxima fase.
– Preparei uma janta pra gente! – devolve a Clotilde, fingindo casualidade.
– Janta, é...? – Pensando... pensando... Aniversário de casamento sabia que não era, pois já se esquecera dele no mês anterior, pecado que rendeu uma semana de mau humor.
O jantar transcorreu assim, no fio da navalha. De um lado da mesa o Afonso, cauteloso, cenho franzido, tentando não dar nenhuma mancada que denunciasse sua ignorância acerca do que estava acontecendo. Do outro lado da mesa a Clotilde, com tantas expectativas que até fingiu não se importar de ele ter ido buscar na geladeira o ketchup para despejar em cima dos medalhões de filé com molho madeira que preparou com tanto esmero. Mas o momento mais crítico veio no final da ceia, com a pergunta da Clotilde formulada em pé, mirando-o nos olhos, com um olhar sedutor que fora ensaiado em frente ao espelho durante boa parte da tarde.
– Afonso... Advinha o que pensei para a sobremesa?! – aproximando-se dele com seu penhoar vermelho da mesma cor que o batom, unhas e chinelinhos de pompom – É algo que você adora e não ganha faz tempo...
O Afonso suava frio. Pensando... pensando...
– Gosto muito, é?
– Unrum... – mordendo o canto dos lábios. – Muuuuuito!
– Faz tempo?
– Tempo demais...
– Pudim de coco? – Arriscou, inseguro.
Não teve jeito, a Clotilde saiu correndo para chorar no quarto. Ele, sem entender, acabou mesmo na sala, em frente à tv, amargando o seu time perder de goleada. No intervalo até fez mais uma tentativa, gritando para a esposa que permanecia aos prantos do outro lado da porta trancada, mas não obteve resposta.
– Petit gâteau?! Clotilde... Petit gâteau?!!!
Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com
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Um comentário
Gargalhei! Que veia de humor você tem Jean Marcel! Muito, muito bom! Parabéns!
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