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Você abusou [Marcelo Vitorino]

Você abusou 

Enquanto dava voltas no shopping, esperando a hora do encontro chegar, Vanessa tentava se lembrar dos detalhes de como tudo aquilo começou. Caminhando, perdeu a conta de quantas vezes pensou em desistir e ir para casa. Encontrar um estranho, que “conheceu” pela internet, em uma sala de bate-papo qualquer, não era algo que já havia feito. 

O rapaz bem que tentou se “apresentar” antes, mas a alma romântica de Vanessa não permitiu. Não quis nenhuma foto para antecipar o momento do encontro, achou que isso tiraria o brilho do momento. “Se é para fazer algo diferente, que seja especial” — pensava. 

Durante quatro semanas conversaram sobre tudo: a escolha do Papa argentino, o momento político do país, a nova novela que entrara no ar, o medo que Vanessa tem de ratos e qualquer outra coisa que pudesse ajudar os dois a verem se tinham afinidade.
Vanessa podia ser romântica, mas não era tola, sabia que só dar ideia de como seria fisicamente não seguraria o interesse de Danilo, então fez um trato. A cada semana ela mandaria uma foto, de uma parte de seu corpo, mas não podia ser foto íntima, só aquilo que pudesse ser visto publicamente.
Na primeira semana o rapaz quis uma foto dos olhos dela. Vanessa pensou em sacaneá-lo, enviando uma foto de um olhar estrábico, mas achou que seria criancice e mandou uma foto verdadeira. 

— Que olhos lindos você tem, Vanessa! — Exclamou Danilo.

— São para te ver melhor! — Respondeu a moça, fazendo alusão à história do Chapeuzinho Vermelho 

De fato, a moça tinha em seus olhos o alvo dos maiores elogios masculinos, eram pretos como jabuticabas, levemente amendoados, mas o olhar em si, com um misto de inocência e deboche o tornava extremamente sedutor.
Na semana seguinte Danilo quis ver uma foto de sua boca, o que para Vanessa era ótimo, seus lábios eram cheios, voluptuosos, pareciam até que tinham vida própria, tamanho o seu brilho. Era mais uma parte que, certamente, iria encantá-lo. 

Não deu outra! O e-mail que recebeu de volta era só elogio, dos mais rasgados possíveis, exagerados, coisa de quem está apaixonado.

Danilo gostou tanto que ao chegar ao trabalho colocou a foto como o papel de parede de seu desktop. Nas escapulidas que dava para tomar café não tinha outro assunto, podia acontecer outro onze de setembro, nevar no Rio de Janeiro ou até mesmo ver a seleção brasileira ser campeã da Copa do Mundo que não mudaria a pauta, só Vanessa o interessava. 

Os colegas de trabalho passaram a evitá-lo, mas o que afastava os homens de seu convívio atraía as mulheres. Todas entusiasmadas com a mulher misteriosa que Danilo falava. O decorrer da sua história era acompanhado conversa a conversa, dia após dia. 

Para inovar, Vanessa decidiu ela mesma escolher a próxima foto, mandou um close de seu nariz, outro ponto forte da moça. Era um nariz pequenino, que parecia ter sido desenhado à mão por Michelangelo, uma verdadeira obra de arte. A ponta levemente erguida dava a Vanessa o ar de menina. O resultado? Outra chuva de elogios! 

Porém, houve algo diferente dessa vez. Na resposta enviada, Danilo propôs um encontro. Não estava mais suportando a curiosidade e queria conhecê-la tão logo quanto possível. Arredia, Vanessa respondeu que ainda era cedo para se conhecerem pessoalmente. 

O rapaz não se conformou, em toda conversa que tinham através do computador, deixava claro que não aceitaria um “não” como resposta.A insistência dele foi tanta que Vanessa sumiu da sala de bate-papo por uns dias. Também resolveu não responder os apelos que chegavam por e-mail.

O distanciamento fez com que Danilo entrasse em pânico, quando não tinha insônia, era agraciado por pesadelos. O medo de ter feito uma bobagem e ter assustado Vanessa chegou até a lhe tirar a fome.
Quando já estava pensando em maneiras de localizar o endereço da moça através de algum rastreamento eletrônico, ela reapareceu, para alívio do pobre rapaz. 

O distanciamento, de certa forma, foi favorável para ele. Vanessa pensou bastante e mudou de ideia. Qual seria o problema em se conhecerem? Eram adultos, independentes e não deviam nada para ninguém. Também ponderou que se não gostassem um do outro poderiam ser amigos. 

Suas amigas a achavam uma doida varrida por querer se encontrar com um completo estranho e de tanto encherem sua paciência acabaram conseguindo regrar o encontro, daí a escolha de um local seguro, o shopping próximo a sua casa, em frente à praça de alimentação. 

Os dois combinaram também a forma com que estariam vestidos. Ela de vestido vermelho, ele de camisa preta e calça jeans. Na hora marcada Vanessa foi ao encontro de Danilo. Ele já estava lá, aguardando por ela. 

Assim que ela se aproximou, finalmente conheceu o seu admirador. Porém o encontro não foi bem o que esperava, pode ser o jeito dele ou então um desarranjo oriundo do estranhamento de estar fora da zona de conforto, mas Danilo pareceu não sorrir muito. 

Sentaram em uma das mesas e o rapaz se ofereceu para pegar algo para tomarem. Vanessa pediu um suco. Enquanto Danilo foi buscar as bebidas, ela conseguiu observá-lo melhor. Não era muito bonito, mas parecia ter carisma e ter muita confiança, o que era um ponto bom. De qualquer forma, se sentiu aliviada por não nutrir expectativas demais sobre ele.
Quando retornou à mesa não conseguiram engatar mais do que três ou quatro assuntos, parecia que não havia encaixe. Resolveram ir cada um para o seu lado. Nos dias que se seguiram, quem sumiu foi Danilo. 

Quando apareceu, Vanessa não se conteve:

— Oi, Danilo. Tudo bem?

— Tudo. — respondeu secamente.

— Olha, não estou entendendo bem qual é sua. Primeiro você me enche de elogios, me pressiona para te encontrar e quando resolvo ir, você parece nem ter dado bola direito. O que foi que aconteceu?

— Não sei bem como te dizer isso…

— O que foi? Você é casado?

— Não! É que… Acho que não combinamos…

— Como assim?

— Você tem os olhos lindos, uma boca de parar o trânsito, um narizinho delicado, mas tudo junto não ficou bom!

Vanessa conteve o choro, não precisava, atrás do monitor do trabalho ninguém a veria chorar, mas não queria dar esse gosto a Danilo. Quis ofendê-lo, mas diante da sinceridade cruel do rapaz, ateve-se a somente responder: 

— Você tem razão, Danilo. Não combinamos. 

Você abusou 
Música de Jocafi e Antônio Carlos, nas vozes de Vinícius de Moraes, Toquinho e Maria Creuza 
 
Você abusou 
Tirou partido de mim, abusou
Você abusou
Tirou partido de mim, abusou
Tirou partido de mim, abusou
Tirou partido de mim, abusou 

Mas não faz mal
É tão normal ter desamor
É tão cafona é sofredor
Que eu já nem sei
Se é meninice ou cafonice o meu amor
Se o quadradismo dos meus versos
Vai de encontro aos intelectos
Que não usam o coração como expressão

Você abusou
Tirou partido de mim, abusou

Tirou partido de mim, abusou

Tirou partido de mim, abusou

E me perdoe se eu insisto nesse tema
Mas não sei fazer poema ou canção

Que fale de outra coisa que não seja o amor

Se o quadradismo dos meus versos
Vai de encontro aos intelectos
Que não usam o coração como expressão


Fonte:


Marcelo Vitorino- Trabalho com publicidade desde 1999 e, depois de um tempo, acabei indo naturalmente para o marketing e desde 2007 passei a integrar o pessoal do marketing digital.
 Como produtor de conteúdo na internet estreei escrevendo o Pergunte ao Urso, um projeto que visava entender como funcionava o consumo de conteúdo pelo público feminino. A ideia deu certo, o blog virou dois livros, teve presença em rádio, mídia impressa e até na televisão. Chegou a ter um milhão de acessos mensais.
No final de 2012 decidi que era a hora de virar a página e encerrar o projeto. Publiquei todo o meu aprendizado em um documento que está disponível na internet, portanto, se você quer começar um blog, sugiro que leia.
Acabei me viciando em escrever e interagir com o público. Já que não fui forte o bastante para largar o vício, entendi que o melhor caminho era começar outro projeto.
Sou fruto de uma família muito numerosa e como acabei chegando por último tive uma formação muito diferenciada. Aos 14 anos escutava muita Bossa Nova e MPB, depois passei a escutar Samba, Blues, Jazz e Soul. Fui escutar Rock e outros gêneros musicais bem mais velho.
O fato é que sempre gostei de música. Para mim, todo grande momento da vida tem uma trilha sonora.
Como referências literárias tenho dois modelos: Nelson Rodrigues e Luís Fernando Veríssimo. O primeiro pela ambientação perfeita que há nos seus textos, o segundo pelo diálogo e reflexões de seus personagens.

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