A HORA DA ESTRELA
“Acabei de ter a franqueza
de dizer para aquela moça que saiu daqui que ela ia ser atropoelada, ela até
chorou muito, viu os olhos avermelhados dela?”
Por Elenilson Nascimento
É muito difícil esquecer o
personagem Chicó, consagrado nos cinemas por Selton Mello, no filme "O
Auto da Compadecida", lançado em 2000, baseado na obra de Ariano Suassuna
– autor que me tirou uma edição de livro pela Fundação Casa de Jorge Amado em
2003. Mas ao abordar a segunda fase do Modernismo por meio da prosa
regionalista nordestina do romance “O Quinze”, de Rachel de Queiroz, ou
então “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, percebemos que vários autores
brasileiros enfatizaram a eterna seca do Nordeste, que até hoje é desprezada pelo governos, inclusive pelo mentiroso regime petista, e como consequência a
migração, que retrata a grande seca de 1915 do Ceará. Essas obas fixam nos
dramas, constrangimentos e perdas dos retirantes, em meio ao qual se esboça um
idílio amoroso entre as personagens, que não chegam a concretizar-se pelo
infortúnio do flagelo e do ar de miséria que impregnava em função da seca.
Mas o primeiro texto a
apresentar o migrante com fala própria, e curiosamente corpo e alma, postura,
indiguinações e sentimentos, foi “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de
Melo Neto – um poema que mescla de prosa, poesia e drama num texto que narra o
trajeto que Severino percorre para a capital. E embora só encontre a morte, a
perspectiva do protagonista é otimista – a vontade de encontrar melhores
condições de vida – e uma vez tendo percebido que seu sonho não passava de uma
ilusão, ele pensa em se matar, mas o Auto de Natal que é encenado para ele e a
lição de fé na vida que Seu José lhe dá, mostrando uma alternativa.
Contudo, em “A Hora da Estrela”,
de Clarice Lispector, o enredo gira em torno de Macabéa, migrante nordestina em
luta pela sobrevivência no Rio de Janeiro como datilografa e, a um só tempo, o
drama, a ingenuidade, a ignorância, a amargura, a vergonha e a pobreza do seu
narrador – máscara ficcional de Clarice –, que “luta” com a escrita para
conseguir retratar um personagem distante de sua realidade
socioeconómica. “Fatos são pedras duras e agir está me interessando mais
do que pensar, de fatos não há como fugir”.
Livro publicado pouco
antes da morte de Clarice, em 1977, "A Hora da Estrela" é narrado por
Rodrigo S.M., alter ego da autora, onde o retrato de Macabéa é descrito por uma
narrativa complexa e marcada pela presença de conflitos existenciais da
protagonista, bem como do próprio Rodrigo. “Sim, minha força está na solidão.
Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois
eu também sou o escuro da noite”.
"A Hora da
Estrela" é um livro pequeno, mas interminável nos questionamentos quanto à
condição humana, pois ao longo do enredo no qual se fundem histórias da
nordestina que se achava feia e a história do autor do livro, identificado como
Rodrigo S. M., sem propriamente um rosto definido, mas que interfere
sistematicamente no enredo; e também a história do próprio ato de escrever.
“Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e
lascas como aços espelhados”.
Assim como no livro “Outra
Hora da Estrela”, Clarice/Rodrigo oscila entre a compaixão por Macabéa,
frágil, e a angústia do escritor às voltas com sua incompetência para
transpor em palavras a vida dos miseráveis. “E só minto na hora exata da
mentira”. Mas se há muita dor, há também humor e reviravoltas, como na relação
entre Macabéa e seu namorado, o operário rude e vaidoso Olímpico, nordestino
como ela, que a abandona para ficar com Glória, carioca loura falsa, sensual e
confiante.
As características
apontadas, em especial o sentimento de culpa do narrador- personagem, são muito
marcantes em “A Hora da Estrela”, e isso pode ser bem exemplificado com o
primeiro dos vários títulos que abrem a obra: "A culpa é minha", onde
a autora escreve: “A minha vida a mais verdadeira é irreconehcível,
extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique”. Além disso
tudo, a consciência da precariedade da linguagem literária, incapaz de suprimir
o fosso existente entre o "eu" e o "outro", representa o
núcleo de todo o conflito do livro. E se não fosse pelo sentimento de culpa
explicitado, os demais traços estilísticos poderiam ser imputados a obras como
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, ou “Mar Morto”, de
Jorge Amado.
Para a escritora Anna
Carvalho e minha coautora em “Clandestinos” e Diálogos Inesperados sobre
Dificuldades Domadas”: “Macabea foi um limite para Lispector, ela se impôs,
depois morreu. Macabea a matou, foi a frase dela. Ela é limitada e o sonho a
matou, imprevisível para uma mulher que buscava o contexto, sendo
descontextualizada”. Mas em "A Hora da Estrela" também ficam visíveis
algumas das principais características dos autores da terceira fase modernista
no Brasil (posteriores aos romances regionalistas), como a utilização de muitas
análises psicológicas aprofundadas, que revela, por meio da narrativa interior,
o fluxo de consciência e o intimismo. “Sei que há moças que vendem o corpo,
única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de
mortadela”.
Pra terminar essa resenha
cheia de admiração, na Dedicatória, a autora deixa claro que se converterá em
um ser fictício, Rodrigo S.M. (*engraçado isso!), como se fosse outra faceta de
sua personalidade, o que não compromete a consciência de sua individualidade. E
fala que dedica-se também aos gnomos, anões, sílfides e ninfas, além de
manifestar admiração por Beethven, Chopin, Stravinshy e Strauss. Mas talvez
Clarice tenha optado por se tornar um “narrador masculino” para poder ser mais
agressiva e menos sentimental, o que caracterizaria uma ironia da autora em
relação à condição da mulher na sociedade. Bem longe da demência de que mulheres
têm que ser frágeis e piegas. A autora buscou dialogar com o leitor,
despertando nesse um papel mais ativo, que é o de compartilhar a culpa que ela
sente e a responsabilidade que tem para com a injustiça social e a alienação
simbolizadas por Macabéa. Mas a personagem que eu mais gostei nesse livro
foi a Madama Carlota (*interpretada no vídeo abaixo por Regina Casé). Um livro
maravilhoso! (“A HORA DA ESTRELA”, de Clarice Lispector, romance, 87 págs,
Rocco – 1977)
Elenilson Nascimento. Seu instrumento de trabalho: a literatura. Suas vítimas: os leitores incautos. Sua meta: criticar, escrever, publicar, deliciar. Sua cara: ainda pouco veiculada. Seu endereço: desconhecido. Seu diálogo com o público: um monólogo interior. Seu número de telefone: nem mesmo sua família sabe. Ele é um ex-professor (*que não acredita mais em educação e nem em instituições desse país), escritor desaforado, poeta indignado, e como se não bastante, ficcionista de mão cheia. Já participou de várias antologias pelo país, 1º Lugar no I Concurso de Literatura Virtual e classificado no II Prêmio Literário Livraria Asabeça 2003. Autor de alguns livros desaforados e, assim, vai seguindo e experimentando dessa dor de fazer o novo diante de uma vanguarda feita de elite e de passado. Mas o que mais me orgulha foi ter colocado no ar (desde 2003) o blog LC, pois "...na esquina da cadeia desemboca o enterro. O caixão negro, listado de amarelo, pende dos braços de quatro homens de preto. Vêm a passo cadenciado os amigos, seguindo, o chapéu na mão, a cabeça baixa. As botas rústicas, no completo silêncio, fazem na areia do chão o áspero rumor de vidro moído." Pronto, esse sou eu. Quer saber mais, então manda sinal de fumaça! Sobre o Blog: A Web é uma fronteira por onde eu (ainda) posso expandir as minhas linhas tortas. Este blog é o início da minha campanha rumo a minha expulsão da ABL. O primeiro passo poderia ter sido o Twitter, mas lá é um território arrogante de irredutíveis gauleses. * Me siga pelo Twiiter: Elenilson_N
Um comentário
Elen,mais uma vez brilhante na sua capacidade e astúcia da cognição e fruição de Clarice, sei do seu desaponto com uma narrativa que desova mais uma nordestina meio débil,mas entendo que a debilidade de Macabéa se restringe à debilidade de uma escritora que precisava se encarcerar numa narrativa.Amei a sua perspectiva de análise das tipologias de nordestinos-sertanejos que você apresenta,concordo com a alma e o tom confessional em João Cabral e na literatura intimista de Rachel, tão boa a sua resenha que levarei para o cursinho onde dou aula.
Aproveito para estender os meus agradecimentos à Revista Biografia pela iniciativa e excelência.
Anna Carvalho
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