Até que a morte os separe...[Jean Marcel]
– O que tem a ver uma coisa com outra? – indignou-se o Afonso.
– Diz ou então eu não te respondo o que me perguntou – ameaçou o Tigrão.
– Comida? Ah, sei lá... Tem tantas e tão boas...
– The best! Aquela que você lambe os beiços e repete no exagero... Aquela que escolheria para ser seu último pedido! Qual é?
– Uhm... Acho que se fosse pra escolher... Só uma? Então bife acebolado com arroz e batata frita. De certeza, escolheria um bife acebolado no capricho!
– É a que mais gosta?
– Anrã!
– Tá escolhido? Não vale mudar, hein?
– Tudo bem, amo bife acebolado. Dá pra acreditar? Eu sei que é simples, mas gosto, fazer o quê?
– Mas já experimentou outros pratos, outros sabores, outras comidas?
– Que é isso... É óbvio que sim! Quem não experimentou?
– E gostou?
– Ah, de algumas sim, de outras não... Normal!
– De quais gostou?
– Ah, sei lá, tem tantas...
– Cita alguma!
– Deixa ver... pensando... A feijoada, isso... uma feijoada tem o seu valor!
– Sei... Estou te manjando, Afonso... Fala que gosta de um lance simples, caseiro, mas curte uma feijoada “safada” com torresminho, costelinha e carne seca! É comer e se arrepender no dia seguinte...
– Isso mesmo! – risos – É muito bom! Mas não é pra todo dia...
– Ah, não é mesmo! Mais de vez em quando...
– Isso... Cometemos um pecadinho!
– Que mais?
– Outro prato? Ah, que tal um filé de côngrio com molho de alcaparras? Boa pedida?
– Gosta?
– Ôooo! Com um vinho branco, então...
– Agora escolheu um prato mais sofisticado...
– Anrã! Sou eclético!
– Mas é apaixonado por bife acebolado!
– Sou, sim. Quer ver com um arrozinho meio solto meio papa e uma porção de batatas fritas... Perfeito! E não é um prato arrogante, lembra a comidinha da mamãe... Frugal!
– Freud explica essa fixação em mãe...
– O quê?
– Nada não! Já que você gosta tanto, que tal comer bife acebolado todo dia?
– Como assim?
– De segunda a segunda... Quando tiver fome, bife acebolado!
– Todo dia?
– No começo sim – risos – mas depois, só quando tiver muita fome! Mas não pode comer outra coisa!
– Não estou entendendo!
– Simples: significa dar adeus a uma refeição safada, se despedir de uma comida sofisticada, dispensar para sempre um prato exótico... Outros sabores? Nunca mais!
– Como assim, “nunca mais”?
– Nunca mais! Mas tudo bem, você pode ser criativo...
– Criativo?
– É claro, você pode variar as posições... Por exemplo, um dia você coloca as cebolas em cima do arroz, no dia seguinte você inverte. Pode ainda colocá-las do lado do bife.
– Que fascinante...
– Também pode variar o figurino... Prato fundo, prato raso...
– Sei...
– Mas não acabou, pode variar também o lugar... Um dia come o bife acebolado na mesa da sala, com luz de velas, já no dia seguinte em pé, na cozinha. Também pode fantasiar que está comendo outra coisa...
– Mas vai continuar sendo bife acebolado?
– Anrã... Afinal, é o prato que você mais gosta! O que escolheu entre milhares de opções sempre disponíveis! O mundo lhe oferece um banquete permanente e você selecionou um único prato!
– Estou ficando enjoado... Não posso dar nem uma bicadinha?
– Sinto muito, mas é uma escolha irrevogável. Um dia se lembrará de quando podia escolher livremente o que queria comer: massas, grelhados, peixes, aves... Até uma costela gorda, se desse na veneta!
– Adoro costela!
– Sonhará com a lembrança das refeições que já teve.
– Nem uma massinha com molho funghi?
– Sem exceções! Num belo dia, e esse dia chegará, você espiará o pedido da mesa ao lado.
– Com fome?
– Não, com gula! E verá alguém comendo algo diferente. Qualquer coisa, pode ser até um sushi...
– Não gosto muito de sushi!
– Comendo bife acebolado todo dia, desejará até o sushi da mesa ao lado, acredite!
– Será?
– Pode apostar! E olhará com o canto dos olhos, tentando inutilmente ser discreto, mas o olhar inconfundível será de cobiça.
– Cobiça?
– Sim, cobiça... que é desejo mais olho gordo! Ficará com água na boca!
– E?
– E sei lá, Afonso, mas tudo bem... Afinal, você terá seu bife acebolado!
– Até que a morte nos separe?
– Unrum... Isso mesmo.
– Entendi!
– Bom, agora quer que eu responda o que me havia perguntado? O que era mesmo? Ah, sim, perguntou-me por que, ao contrário de você, nunca me casei!
– Não, obrigado, acho que não é mais necessário...
Embora convencido de que isso jamais ocorreria com ele, pois era apaixonado pela sua Clotilde, o Afonso já não tinha mais argumentos que contestassem a lógica do Tigrão. Preferiu pedir o jantar e mudar de assunto.
– Bigode... – fez sinal para o garçom – O que temos hoje de bom?
– Quer o de sempre, doutor? Bife acebolado no capricho?
– Dorf... Dorf... – Engasgando com a sugestão – Acho que não, de repente me deu uma vontade de comer feijoada...
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