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Minha vida no faroeste [Joca Reiners Terron]

Minha vida no faroeste

Em 1977 eu vivia no faroeste, eu vivia em Tijuana, em Dodge, eu vivia em Tucson, em Fort Sumner, eu vivia às margens do Mississippi, eu era existencialista na beira do Sena pescando sapato, eu vivia nas selvas do Quênia, um Tarzan pulando de galho em galho. Em 1977 não havia engarrafamentos, assaltos, nem mesmo obrigações existiam em minha vida. Ah, mas não existiam mesmo.

Eu explico: em 1977 eu vivia em Alto Araguaia, no Mato Grosso. Alto Araguaia é uma cidade pequena, banhada pelas águas do rio Araguaia e de alguns dos seus afluentes, como o rio Boiadeiros. E como em toda cidade pequena, não havia muito o que fazer nela, além de ler livros do Tarzan e gibis de faroeste. Quer dizer, talvez não houvesse nada para um adulto fazer em Alto Araguaia, mas para um moleque aquilo lá era o Paraíso. Eu entrava na mata me sentindo um explorador, me sentindo um bwana, me sentindo um batedor iroquês vendo as marcas deixadas pelo vento nos troncos das sequóias. Eu descia o rio em boia de trator por cinco quilômetros ou mais, até chegar à delegacia velha, um prédio abandonado na beira do rio que todos diziam ser mal-assombrado. É claro que lá não havia nenhuma sequoia, só sibipirunas e fantasmas.

E de assombração eu entendia, ah se entendia. Quando nos mudamos para a cidade meu pai foi na nossa frente, buscando encontrar uma casa que nos fosse adequada. Voltou todo feliz, dizendo que tinha alugado “um verdadeiro palacete por preço de banana”. A casa era realmente impressionante, com um campo de futebol nos fundos e mais de vinte cômodos. Havia até mesmo um sistema de interfones para comunicar os quartos entre si. Era também cercada por um muro alto de uns três metros de altura. Mas só depois de mudar foi que a gente descobriu por que o aluguel era tão barato: o povo da cidade dizia que a casa era mal-assombrada. Parece que o advogado que a construiu havia se suicidado dentro dela, e — adivinhe onde? — justamente no meu quarto. No dia em que chegamos, depois de tomar o seu primeiro banho na casa, minha mãe perdeu a aliança de casamento que tinha deixado em cima da pia do banheiro. A aliança sumiu e só apareceu no último dia que ficamos na casa, três anos depois, às vésperas de novamente mudarmos de cidade, e no mesmíssimo lugar em que desapareceu: em cima da pia.

Um espanto, enfim. Eu costumo creditar às assombrações que me assolavam as diversas maluquices que pratiquei na época. Uma delas foi em parceria com o meu melhor amigo, o Herbert. O Herbert era filho do único farmacêutico da cidade e nós dois costumávamos, como dizem todas as mães, “inventar moda”. Certa vez fabricamos alguns bisturis com giletes e começamos nossa fracassada e breve carreira de cientistas malucos, cujo projeto mais ambicioso foi transplantar os cérebros de lagartixas com hábitos diurnos para lagartixas com hábitos noturnos e ver se elas mudavam de comportamento. As experiências inexplicavelmente nunca davam certo, pois as lagartixas morriam na mesa de cirurgia. Acho que morriam por causa dos germes, nosso hospital não era muito higiênico.

Porém a mais bem-sucedida de minhas travessuras foi nada menos que extraordinária. Em nossa vizinhança existiam muitos terrenos baldios, onde os carroceiros da cidade deixavam seus pangarés pastando. Um dia, eu e o Herbert tapamos nossas caras imberbes com lenços que nem bandidos de gibi e levamos dois daqueles cavalos. Dias depois, como a operação tinha sido um sucesso — a casa tinha muros altos e era impossível ver de fora o que acontecia lá dentro —, resolvemos emprestar mais alguns e chamar toda a garotada para brincar de bangue-bangue com cavalos de verdade. E por um mês inteiro, em 1977, eu vivi em Tijuana, em Dodge, eu vivi em Tucson, em Fort Sumners, eu fui um verdadeiro caubói existencialista na beira do Araguaia, um Lone Ranger cheio de amigos. Funcionou até o meu pai perceber que o quintal inteiro estava coberto de bosta de cavalo, claro, mas isto é uma outra história, muito mais dolorida.

Joca Reiners Terron é escritor. Publicou Curva de rio sujoSonho interrompido por guilhotina, entre outros. Pela Companhia das Letras, lançou seu último romance, Do fundo do poço se vê a lua, e relançou seu primeiro, Não há nada lá. Ele contribui para o blog com uma coluna quinzenal.
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