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A PERGUNTA [Raul J.M. Arruda Filho]

A PERGUNTA 

As palavras possuem poderes mágicos. Eles estavam deitados na cama, de conchinha. Um corpo transmitia calor para outro. O cenário perfeito para o amor. Sussurrando, ela fez a pergunta:

− Arthur, você está me traindo?

As palavras são campo minado. Foi como se o mundo tivesse congelando. Talvez pior. Pior do que isso somente o inferno. Demorou, mas havia chegado a hora do juízo final.

− Que absurdo! De onde você tirou essa idéia ridícula?

As palavras aprisionam. Ela não fez nenhum esforço para se libertar do abraço. Mas sentiu um movimento involuntário, ele estava apertando−a com uma força inadequada para aquele momento.

− Joana me disse que viu você com outra. Em um motel.

As palavras diminuem a luz, trazem a escuridão para perto. Nenhum argumento consegue demolir a acusação formulada por testemunha.

− Joana é uma fofoqueira, dá tudo para ver o circo pegar fogo. Você sabe disso. Ninguém consegue esquecer que foi ela quem inventou aquela nojeira sobre o Armando.

As palavras anunciam a destruição. Ainda bem que ele teve presença de espírito para contra−atacar. Não era a melhor solução, mas servia para lançar uma pitada de dúvida no caldeirão de intrigas em que ele estava sendo cozinhado.

− Ela disse que conhece a pessoa que estava com você.

As palavras subtraem. Não importa: é preciso negar, negar tudo. Independente do que ela diga, a regra é inflexível: negar, negar sempre.

− Que absurdo! Acabei de passar quinze dias em São Paulo. Como é que ela pode ter me visto em um motel?

As palavras traem. Mal terminou de falar e já estava arrependido. Na tentativa de se livrar da acusação, acabou mergulhando no fogo.

− O problema é esse: ela estava em São Paulo na semana passada.

As palavras condenam. Ele não conseguiu esconder o silêncio no meio das frases pronunciadas, no meio de alguns sons desconexos com os fatos.

− O quê? E você acreditou nessa coincidência? Em uma cidade com sei eu lá quantos milhões de habitantes, ela conseguiu me ver em um motel?

As palavras são sinônimas do espanto. A melhor tática é o uso da lógica, o afastamento imediato de qualquer duvida.


− Ela disse que fotografou você.

As palavras anunciam a morte. A situação estava começando a ficar fora de controle. Se ele não encontrasse alguma forma de reverter a avalanche, nada mais restaria senão o ouvir as acusações maldosas, repetir aos gritos as mágoas que não cicatrizaram.

− Mentira! Quer dizer... Só pode ser mentira.

Muitas vezes sobram palavras. Poderia ter ficado calado. Não ficou. Fazia parte de sua estratégia preencher as lacunas.

− Eu vi as fotos.

Muitas vezes faltam palavras. A afasia é angustiante. Mais angustiante do que isso foi vê−la se levantar, vestir a roupa, sair do quarto, ouvir a porta batendo.

Quando estamos sozinhos as palavras são inúteis.


Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 
Todos os direitos autorais reservados ao autor.

3 comentários

Maria Bonfá disse...

fantástico..texto que me fez perder o fôlego .deu para sentir a angustia dele ao ser descoberta a traição...meus aplausos..

Brasilino Neto - Caçapava - SP. disse...

Raul Filho que excelente, texto curto de palavras mas extenso no conteúdo. Fui acompanhando cada palavras e respirando fundo e aguardando o final. Sensacional. Parabéns, embora o saiba redundância.

Fernanda Siems disse...

maravilhoso texto Raul, como sempre, tirando o fôlego.:)