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Millôr Fernandes: o último dos bons [Carlos Orsi]



Millôr Fernandes: o último dos bons

Millôr manteve-se firme na prática de seu credo de ceticismo e crítica. 
Após a vitória de Tancredo no colégio eleitoral, ele já soara o alarme: 

"Um espectro assombra o Brasil. 
O espectro do humorismo a favor."



Os mais novos não vão se lembrar, mas houve uma época em que o humor, no Brasil, era o último refúgio, não do preconceito e da escrotidão, mas da lucidez. Nos anos finais da ditadura, Luís Fernando Veríssimo, Millôr, Ziraldo e Henfil, entre outros, mostravam-nos, com arte e alegria, aquilo que repórteres e editorialistas não podiam, ou não conseguiam — que o rei estava nu.
Com a redemocratização, no entanto, o espírito pareceu, por um momento, arrefecer. Millôr foi o primeiro a soar o alerta. “Um espectro assombra o Brasil”, escreveu ele, após a vitória de Tancredo Neves no colégio eleitoral. “O espectro do humorismo a favor”.

A assombração, no entanto, ainda precisaria de algum tempo para se manifestar: ela só nos alcançou, de vez, com a chegada do PT ao poder. A partir daí, Ziraldo sumiu da cena da crítica política, transformando-se no Walt Disney do Menino Maluquinho; Veríssimo emasculou-se (alguém se lembra da última vez que ele escreveu algo que tivesse um pingo de graça?); quanto a Henfil, morto vítima da aids, é difícil saber qual teria sido sua trajetória — mas, dada sua adesão entusiástica ao PT, as possibilidades não são das mais alentadoras.

Millôr, por sua vez, manteve-se firme na prática de seu credo de ceticismo e crítica. Seu chiste definitivo sobre Lula — “a ignorância subiu-lhe à cabeça” — é tão certeiro quanto impensável na boca de qualquer um de seus colegas dos tempos de combate à “redentora”. Embora, suponho, nenhum deles tivesse hesitado em usá-lo contra, digamos, o general Figueiredo.
Eu me lembro, quando estava na faculdade, fazendo o Jornal do Campus, de uma discussão que tivemos a respeito de uma pauta sobre os “supersalários da USP” — uma minoria de professores que, por manobras diversas, acumulavam vencimentos espantosos. Um professor foi contra a cobertura do assunto, porque seria “fazer o jogo do Quércia” (então governador do Estado). Mesmo moleque, pensei: “Como assim, ‘fazer o jogo’? Qual a relevância disso? O que importa é se é verdade ou não”.

Millôr Fernandes estava cabeça e ombros acima daquele professor. Ele não se preocupava em “fazer o jogo” de quem quer que fosse. Num país onde o debate de ideias muitas vezes se reduz a uma espécie de Fla-Flu (petistas vs. tucanos; comunistas vs. reaças; ateus vs. evangélicos), e onde nenhuma jogada “dos nossos” é suja demais que não possa ser apoiada, onde nenhuma jogada do adversário jamais é legítima, por mais que se enquadre nas regras, ele se mantinha, supremamente, fiel a si mesmo, expondo ao ridículo quem merecesse ser ridicularizado — como em “FhC é o superlativo de PhD”.
Agora que ele se foi, contemplo a planície e não vejo mais ninguém com a mesma estatura.

Millôr certa vez se declarara “candidato perpétuo” a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Desde que pudesse escolher a cadeira. Ele queria a de José Sarney.
Que merda, mestre. Pena, mas não deu.



Carlos Orsi-Jornalista e escritor. De 2005 a 2010, foi editor de Ciência do site do Estadão. Autor, entre outros, dos romances Guerra justa (2010) e As dez torres de sangue (2012), e de O livro dos milagres: A ciência por trás das curas pela fé, das relíquias sagradas e dos exorcismos (2011).

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