Millôr Fernandes: o último dos bons
Millôr
manteve-se firme na prática de seu credo de ceticismo e crítica.
Após a vitória
de Tancredo no colégio eleitoral, ele já soara o alarme:
"Um espectro
assombra o Brasil.
O espectro do humorismo a favor."
Os mais novos não vão se lembrar, mas
houve uma época em que o humor, no Brasil, era o último refúgio, não do
preconceito e da escrotidão, mas da lucidez. Nos anos finais da ditadura, Luís
Fernando Veríssimo, Millôr, Ziraldo e Henfil, entre outros, mostravam-nos, com
arte e alegria, aquilo que repórteres e editorialistas não podiam, ou não
conseguiam — que o rei estava nu.
A assombração, no entanto, ainda
precisaria de algum tempo para se manifestar: ela só nos alcançou, de vez, com
a chegada do PT ao poder. A partir daí, Ziraldo sumiu da cena da crítica
política, transformando-se no Walt Disney do Menino Maluquinho; Veríssimo
emasculou-se (alguém se lembra da última vez que ele escreveu algo que tivesse
um pingo de graça?); quanto a Henfil, morto vítima da aids, é difícil saber
qual teria sido sua trajetória — mas, dada sua adesão entusiástica ao PT, as
possibilidades não são das mais alentadoras.
Millôr, por sua vez, manteve-se firme
na prática de seu credo de ceticismo e crítica. Seu chiste definitivo sobre
Lula — “a ignorância subiu-lhe à cabeça” — é tão certeiro quanto impensável na
boca de qualquer um de seus colegas dos tempos de combate à “redentora”.
Embora, suponho, nenhum deles tivesse hesitado em usá-lo contra, digamos, o
general Figueiredo.
Eu me lembro, quando estava na
faculdade, fazendo o Jornal do Campus,
de uma discussão que tivemos a respeito de uma pauta sobre os “supersalários da
USP” — uma minoria de professores que, por manobras diversas, acumulavam
vencimentos espantosos. Um professor foi contra a cobertura do assunto, porque
seria “fazer o jogo do Quércia” (então governador do Estado). Mesmo moleque,
pensei: “Como assim, ‘fazer o jogo’? Qual a relevância disso? O que importa é
se é verdade ou não”.
Millôr Fernandes estava cabeça e
ombros acima daquele professor. Ele não se preocupava em “fazer o jogo” de quem
quer que fosse. Num país onde o debate de ideias muitas vezes se reduz a uma
espécie de Fla-Flu (petistas vs. tucanos; comunistas vs. reaças; ateus vs.
evangélicos), e onde nenhuma jogada “dos nossos” é suja demais que não possa
ser apoiada, onde nenhuma jogada do adversário jamais é legítima, por mais que
se enquadre nas regras, ele se mantinha, supremamente, fiel a si mesmo, expondo
ao ridículo quem merecesse ser ridicularizado — como em “FhC é o superlativo de
PhD”.
Agora que ele se foi, contemplo a
planície e não vejo mais ninguém com a mesma estatura.
Millôr certa vez se declarara
“candidato perpétuo” a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Desde que
pudesse escolher a cadeira. Ele queria a de José Sarney.
Que merda, mestre. Pena, mas não deu.
Carlos Orsi-Jornalista e escritor. De 2005 a 2010, foi editor de Ciência do site do Estadão. Autor, entre outros, dos romances Guerra justa (2010) e As dez torres de sangue (2012), e de O livro dos milagres: A ciência por trás das curas pela fé, das relíquias sagradas e dos exorcismos (2011).
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