Não rias de mim, Argentina!
Uma semana em
Buenos Aires – buenos y fríos aires! – apreciando as belezas e o clima
portenhos. O dia da chegada, a princípio, pareceu-me inoportuno, pois Cristina
Kirchner pleiteava reeleição à presidência da Argentina. No entanto, tudo
transcorreu no ritmo rotineiro, e, do processo eleitoral, nem indício. A não
ser pela “Lei Seca”. Nada de bebida durante o dia, só após às 20h, apregoavam.
Porém, à moda ‘jeitinho brasileiro’, ao final da tarde, alguns barzinhos e
‘empanaderías’ liberaram, de forma velada, assim, debaixo da lei, a bebida
alcoólica. E quem estava sedento por ela, saciou a vontade, bem à vontade.
Parênteses: de
mamando a caducando, do inculto ao intelectual, por lá, não se usa presidente,
é presidenta mesmo, e para qualquer mulher que ocupe a função de presidir, não
importa o quê. Tampouco, ouvi sandices modelo “eleganta”, “doenta”, “pacienta”
e outras aberrações tão usadas por aqui, como forma de comparação, com o fito
único de ridicularizarem o uso legítimo do vocábulo feminino (e não é que já
infestaram de novo minha caixa com textos com tal conteúdo?!). Pois é, los
hermanos não praticam essa modalidade de asneira, essa bobajada sem eira nem
beira, ao contrário, mostram-se civilizados, bem informados e, sem dúvida,
respeitam e acreditam nos dicionários. Bem como os franceses, é bom que se diga.
Bela, elegante e
pomposa, como sempre, Buenos Aires! Avenidas de pernas esguias e coxas largas,
assediadas por uma arquitetura exótica, eclética, que abarca variados estilos
(colonial, neoclássico, art nouveau, art déco, moderno), cuja história esculpe
personagens, e cuja memória desperta patriotismo. Um rosto de sol, incrustado
no azul e branco da bandeira, tremula altivo, e doura a dignidade e o orgulho
argentinos, sempre expostos. Exacerbada, a índole nacionalista desse povo.
O tango, seu
genuíno patrimônio cultural. Emocionante cada espetáculo, pela beleza plástica,
pela presença cênica, pelas coreografias, pela leveza dos pares. Momentos
plenificados na sensualidade. Os toques, o olho no olho, os corpos colados a
roçarem intimidades, pernas entrelaçando-se em malabarismos instigantes,
contorções voluptuosas, embevecidas pela música, enfim, uma conjunção de arte e
de paixão. O tango tem alma rubescente que incandesce ao primeiro contato. Ah!
e aquela dançarina linda, porte de rainha, vestido vermelho com fenda enorme a
lhe devassar a perna e o caminho das
flores, ao som de La Cumparsita, enroscando-se, lascivamente, em seu
parceiro... As fantasias da plateia também rodopiam entre os passos do casal.
A carne saborosa e
suculenta, de estirpe nobre, assim como o Dulce de leche, tombados pelo gosto
dos que se curvam às suas delícias. O sorvete artesanal da Fredo (de doce de
leite, claro!, em suas muitas variantes), um desafio, já não fosse um acinte, à
disciplina dos diabéticos e à dieta dos gordalhufos. Por falar em gordalhufos,
Maradona, outro patrimônio nacional.
O peso do peso
argentino, nem tão pesado assim, um detalhe interessante, embora alguns
comerciantes tentem engambelar o turista com o intuito de um ganho a mais.
Todavia, fato desconcertante e injurioso, o derrame de notas falsas. Centenas
habitam os bolsos dos taxistas. Inacreditável. E o pior: todos estão cientes
disso, já se tornou fato corriqueiro. Os próprios hotéis alertam os turistas
para os cuidados necessários. Quase ninguém fica imune a tal agressão. A
estratégia é afrontosa: o taxista recebe a nota, troca-a sem ser percebido,
devolve-a ao passageiro, sob o argumento de que é falsa, e exige-lhe outra.
Desse modo, cobra a corrida duas vezes e, de sobra, o lesado fica com a nota
falsa.
Algo
incompreensível: por que a polícia e o governo fazem vista grossa a esse tipo
de crime? É sabido aqui, lá, acolá, que pesos falsos, em fartura, fazem parte
da rotina dos condutores de táxis e, mesmo assim, a impunidade grassa majestosa
nas ruas de Buenos Aires, incentivando-os a uma prática criminosa que enodoa a
honra argentina. Por que tal conivência? A cumplicidade, explícita na falta de
ação das autoridades competentes, é intrigante. O turista não merece tamanho
desrespeito. Portanto, não rias de mim, Argentina!
Baiana de Urandi e goianiense por adoção, LÊDA
SELMA (de Alencar) é graduada em Letras Vernáculas e pós-graduada em
Linguística. Poetisa, contista, cronista (escreveu para o Diário da Manhã por
21 anos, aos domingos), integra várias antologias nacionais e internacionais. É
verbete em obras como o Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, de Nelly
Novaes Coelho, São Paulo/SP, e Enciclopédia de Literatura Brasileira, Afrânio
Coutinho/J. Galante de Sousa, São Paulo/SP. Atual vice-presidente da Academia
Goiana de Letras/AGL (ocupa a Cadeira 14), da Associação Nacional de
Escritores/ANE, União Brasileira de Compositores/UBC, União Brasileira de
Escritores/UBE-GO e Associação Goiana de Imprensa/AGI. Publicou 15 livros
(poemas, contos, crônicas). Entre várias premiações, o Troféu Tiokô de poesia,
da UBE/GO, Troféu Goyazes Marieta Telles Machado, de crônicas, da Academia
Goiana de Letras, e o Mérito Cultural, pelo conjunto da obra, da UBE/RJ.
Recebeu os títulos: Cidadã Goianiense e Cidadã Goiana.
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