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Nossa Senhora do Amor [Manoel Magalhães]

Nossa Senhora do Amor 

Primeiro capítulo do romance Nossa Senhora do Amor, de Manoel Magalhães,  inspirado na vida do pintor italiano Aldo Locatelli, que será publicado em 2013. 

O que se deve manter oculto é aquilo que não confessaríamos a nós próprios. Com tal pensamento, Dom Antonio olhou pela janela o dia sombrio que se arrastava lá fora. Estatura mediana, rosto redondo, o religioso tinha nos olhos sua principal característica. Eram levemente piscos, denotando grande inteligência e perspicácia. À beira de completar cinqüenta e cinco anos, Dom Antonio sentia-se em crise. De fé? Não necessariamente, afirmava de quando em quando. Parado à frente da janela, observava a chuva tamborilando nos telhados da vizinhança do Bispado. Chuva que começara forte as primeiras horas da manhã, mas, àquela hora da tarde, pouco depois das quatorze horas, amainara. O bispo esfregou as mãos frias, batendo levemente os pés no chão. O frio úmido subia-lhe pernas acima, entorpecendo-as. Não tinha na memória lembrança de inverno tão rigoroso em Pelotas. Coçou o queixo bem escanhoado, avaliando a situação na qual fora envolvido à revelia. Era o responsável pela vinda de Aldo Locatelli à cidade. Não podia, entretanto, responsabilizar-se pelos seus atos. Seus dias na cidade talvez já estejam contados. O Pe. Eugênio Giordani ficou bastante impressionado com o trabalho de Locatelli, e por certo irá contratá-lo para decorar a Igreja de São Pelegrino, em Caxias do Sul. Isso seria formidável! Mão às costas dirigiu-se à mesa de trabalho, sentando-se. Ouviu passos no corredor. Seria ele? Que bom que fosse, pois desejava resolver aquela situação com a máxima urgência. Os mexericos que corriam pela cidade o estavam incomodando. A porta se abriu, dando passagem a um jovem padre de olhar malicioso. 
- Senhor, ele está aqui.
- Que bom! Faça-o entrar.
Padre Afonso, com um meneio de cabeça, observando o recém-chegado com o canto dos olhos, deu passagem ao pintor italiano, cujo brilho intenso do olhar nuançava forte personalidade. Alto, rosto enérgico, como que talhado em pedra, cabelo escuro penteado para trás, parou em frente à mesa de Dom Antonio, levando as mãos às costas.
- Sente-se -, disse o bispo, apontando uma das duas cadeiras postas frente à escrivaninha. Locatelli acomodou-se, cruzando  pernas.
- Que bom que o senhor veio - comentou o bispo, olhando o artista fixamente. Não gostava muito de fixá-lo de frente. Não que tivesse medo. Não fora educado para temer os homens. Fora, antes, disciplinado para conduzi-los, orientá-los na vida, indicando-lhes caminho do Senhor. Porém, temia que o artista enxergasse em seus olhos o que tentava, ao longo dos dias, esconder de si mesmo. Havia, entretanto, outros motivos para recear àquele olhar. O mundo da arte, quem sabe, com seu viés, seus labirintos, seus caminhos perigosos... Não; não temia olhá-lo assim de frente; todavia, melhor não fazê-lo repetidas vezes, pois, o não-dito, o não-sabido eram coisas que ele não estava disposto a considerar. Até por que seu mundo era muito claro, muito explícito. Os mistérios a considerar eram os mistérios de Deus. Sim; estava apto a discorrer acerca dos desígnios superiores. Acerca de coisas escorregadias nem pensar.
- Estranhei seu convite, Dom Antonio - disse Locatelli.
O bispo acomodou-se melhor, pois sabia que sua tarefa seria espinhosa.
- Ora, um estranhamento sem motivo -, volveu o religioso, usando de subterfúgio para aliviar a tensão. Ponto para o pintor, obrigando-o a agir de forma não usual. 
Locatelli sorriu, descruzando as pernas, tornando a cruzá-las outra vez. Desde que recebera o convite de Dom Antonio para um encontro, encontro não programado, desconfiava de suas intenções. Gostava do religioso. Desde que o conhecera na Itália, aprendera a respeitá-lo como um digno representante de Deus. Por essa razão entendia seus motivos, ainda que fossem absolutamente discutíveis. Acaso fosse outro bispo a convidá-lo para entrevista tão inusitada, não o atenderia. 
 - Fui comunicado de que há um probleminha na Escola de Belas Artes.
O pintor sorriu, mostrando os dentes serrilhados. O brilho do seu olhar tornou-se ainda mais intenso. 
- Pelo que me consta, Dom Antonio, a situação na escola está normal.
- Normal? - perguntou o bispo, apertando as mãos uma contra a outra.
- Sim, normal.
O bispo engoliu em seco. Diacho de homem mais teimoso!
- Caro maestro - disse mansamente o bispo, medindo bem as palavras. 
- Respeito sua arte como ninguém. Até por que sou responsável pela sua vinda a Pelotas. O trabalho que o senhor realiza na Igreja é irretocável, o que demonstra, inegavelmente, a grandeza do seu talento. Entretanto, já não se pode dizer o mesmo do método de ensino empreendido na Escola de Belas Artes. Não é, digamos nada ortodoxo.
- O senhor está se referindo aos nus artísticos?
Dom Antonio não esperava que o italiano fosse tão incisivo.
- Exatamente.
O pintor pôs-se de pé, dirigindo-se à janela, onde olhou as nuvens carregadas que o vento levava em direção ao sul. Bem que Emilio o havia prevenido quanto ao puritanismo daquela cidade. Trabalhar com nu artístico era por demais ousado, dissera-lhe o amigo. Não lhe dera ouvidos. Aliás, quase nunca dava ouvido a quem quer que fosse. Mercedes, sua esposa, tinha-o como um dos homens mais teimosos que conhecera. Mais ainda que seu velho pai.
Voltou-se para Dom Antonio, olhando-o firmemente.
- Trata-se de arte, dom Antonio. Arte!
- Uma arte ousada demais, o senhor não acha?
Locatelli aproximou-se da mesa, permanecendo de pé, olhando o religioso de cima a baixo. Tinha impressão de que o bispo, aos poucos, ia sumindo na cadeira. Poderia dizer a ele que seus dias em Pelotas estavam contados, que logo estaria em Caxias do Sul, abandonando a Escola de Belas Artes.  Resolveu, porém, brincar com o religioso.
- Como o senhor imagina que eu trabalho, Dom Antonio?
Aquela cadeira, definitivamente, tinha pregos no acento, pensou o bispo, profundamente perturbado com o olhar do italiano. Gostaria de ter resolvido a situação de outra forma. Todavia, algumas paroquianas, respeitáveis paroquianas, o instaram a tomar medidas enérgicas, visando acabar com aquela sem-vergonhice.
- Não entendi a pergunta.  
- Refiro-me, Dom Antonio, aos meus personagens, o Evangelista São Mateus, os anjos que cantam à entrada de Jesus em Jerusalém, São Pedro e São Paulo, e tantos outros, os quais, antes de se constituírem em pinturas sacras, foram inspirados em gente. Gente nua, Dom Antonio, de carne e osso... Com sangue nas veias!
O religioso indignou-se.
- O senhor inspira-se em modelos vivos. Até aí tudo bem. Mas, levar à Escola de Artes esse método de estudo não lhe parece avançado demais para nossos costumes?
Locatelli deixou escapar nervosa gargalhada.
- Ora! Não estamos mais na Idade Média. Admito que existem algumas senhoras incomodadas... Um coro de poucas vozes, Dom Antonio! Não podemos sacrificar o estudo dos alunos por causa dessas poucas e preconceituosas pessoas.
Dom Antonio ficou de pé, levemente ruborizado. Tremiam-lhe as mãos, e um suor indesejado escorreu pelas têmporas. Que italiano desaforado. Mas, no fundo, tinha razão. Os modelos vivos são largamente utilizados nas escolas de arte. Indispor-se com Locatelli por causa de algumas senhoras escandalizadas não estava em seus planos. Todavia, a situação fora criada. Precisava, urgentemente, resolve-la, até por que não desejava polemizar com aquele artista temperamental. Por essa razão, seria bom dar fim àquela desagradável entrevista. Aproximou-se do  pintor, pegando-o do braço, levando-o em direção à porta.
- Meu caro maestro - disse Dom Antonio, voz conciliadora. - Pense  um pouco sobre o assunto.
- Pensarei, Dom Antonio, pensarei - volveu Locatelli, sabendo de antemão que não faria  nada para alterar a ciência de seu trabalho.
- Fico feliz, maestro, muito feliz. - respondeu Dom Antonio, abrindo a porta, estendendo a mão para o muralista - Até mais ver. Recomendações à senhora Locatelli.
O italiano apertou a mão de Dom Antonio; uma mão fria, úmida.
- Até outro dia, Dom Antonio.
Tão logo o artista deixou seu gabinete, o bispo afundou na cadeira. Padre Afonso entreabriu a porta.
- Deseja algo, Dom Antonio?
- Sim, padre Afonso... A paz que não existe na terra. 


Manoel Magalhães- Jornalista, Escritor e Pintor Cinco livros publicados: Guerra Silenciosa – livro-reportagem; Dois Textos Marginais – contos; O Abismo na Gaveta – romance; O Homem que Brigava com Deus – romance; Vampiros - romance. Também escreve para teatro e cinema.Como jornalista trabalhou no Diário Popular, Pelotas; no Diário Catarinense, Florianópolis; e Correio Braziliense, Brasília. Presta consultoria online acerca de técnicas narrativas - conto, crônica, romance, roteiro cinematográfico e texto para teatro. Email: manoelsmagalhaes@gmail.com

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