Inverno Branco [Maurem Kayna]
Ela, moça miúda, de pele muito clara e traços bem acabados, crescera dentre muitos irmãos e irmãs como felino infiltrado em uma matilha. Não se afeiçoava às brincadeiras das meninas, sempre ocupadas com suas bonecas de pano e cantigas de roda. Também tinha pouca proximidade com os irmãos que corriam descalços no campo e caçoavam do seu silêncio sonhador. Passava boa parte do tempo na casa onde a mãe trabalhava, cuidando da cozinha e dos animais domésticos. Uma casa de família distinta, as filhas recebiam lições de línguas e música na biblioteca ampla. Alba, sempre tão quieta, incapaz de importunar as senhoritas ou o professor, era autorizada a assistir as aulas. Assim, aprendeu a ler e ocasionalmente conseguia emprestado algum livro de sonetos, e isso sim lhe trazia júbilo.
Jonas fora criado com severidade, mas nunca desatenção. Talvez os anos de estudo no Colégio Militar o tivessem talhado tão ascético. Encantou-se com a beleza de Alba e não lhe dirigiu a palavra antes de acertar os detalhes do casamento com o pai da menina. O agricultor modesto mal compreendia tamanha sorte para o futuro da filha mais estranha de sua vasta ninhada. Não hesitou em consentir.
Realizaram-se as bodas com toda a cerimônia que Jonas julgava pertinente, mesmo diante da modesta satisfação expressa por sua família. Ao ser questionada sobre as expectativas para o casamento, a noiva falou de umas flores miúdas e perfumadas. Foi a visão dos buquês mesclando as tais flores e lírios brancos no arco da entrada da capela e nas extremidades dos bancos de madeira muito densa que fez brotar o sorriso de Alba no percurso até o altar.
Foram viver numa das propriedades da família dele. Casa imponente, ampla, sem excessos de ornamentos, mas perfeitamente confortável. Alba sentia falta da biblioteca da casa das senhoritas onde sua mãe trabalhava, mas achou impertinente reclamar algo ao marido. Não ocupava-se de tarefas domésticas, mas esperava-se dela que coordenasse as empregadas e isso lhe era penoso. Insistia em ajudar em certos afazeres, mesmo sob o protesto das mulheres, que temiam reprimendas do patrão. Depois de algumas tensões ficou acertado que o jardim e a horta seriam seu território. Ali não chegava à realização, mas ao menos afastava-se da impressão de ser um utensílio da residência.
O afeto de Jonas não encontrava brechas para manifestar-se. Na retidão da sua postura faltava espaço para verbos brandos, os abraços que ela desejava foram trocados por promessas de palácio e jardim. Ele não sabia que Alba precisava menos do mármore que de algum contato cálido. O que ele presenteava conforto e luxo ela sentia forte desterro. Assim, veio, com o mês de agosto, o ressecamento dos sonhos de ambos: uma gripe impôs repouso à Alba, que nesse pretexto febril pode escapar a tudo que gelava a alma. Logo a seguir, tomou-a uma forte anemia. Distância para o fundo de si, abismo. Na última manhã que tiveram antes de começar o período de chuva, aproveitaram a clareza da grama crestada de geada para uma breve caminhada. Não houve outra chance de se atreverem, juntos, sob o céu sem o intermédio da casa. Nesse dia, ele ainda tentou, enfraquecido pelo medo de perder a esposa, deixar de lado a severidade. Andou ao seu lado, vagaroso, ensaiando amparo. Mas o afago era tão minúsculo como as forças que restavam nela. Chegou tarde a quebra da secura aristocrática.
Poucos dias além daquela data, ela se entregou, consentiu na derrota, germinada em mágoa silenciosa. Penas sobre o travesseiro, tantas como as que estão por dentro. A alvura insidiosa contaminara tudo, até o ponto de não se saber a ordem das coisas. Ele, mesmo preferindo a praticidade e a ação no lugar de reflexões, pensou na palidez crescente da mulher sem se decidir se era causa ou reflexo da falta de cores em que viviam. Avançavam as horas, de mãos dadas com o frio e com a mudez que enchia os cômodos da casa. O veredicto do médico trouxe ainda mais silêncio, pesares antecipados se arrastando. Jonas, aproveitando um entardecer sem testemunhas, permitiu-se choro de deixar na boca travo de saudade prévia. Quis chamar um especialista da capital, mas intimamente reconhecia a inutilidade do gesto.
A manhã era alta quando o corpo, quase pluma, foi acomodado para o sepultamento. Nessa hora, as empregadas, tristes com a partida precoce, desfaziam a penumbra, querendo banir o ar de morte que os últimos dias imprimiram ao quarto do casal. O mesmo pavor que corria lento nas veias da falecida, desde o recente abril, assomou às mãos da governanta quando ela tentou, com esforço descabido, erguer o travesseiro onde ela adormeceu em definitivo.
Restava ali tudo que ela desistiu de si mesma em gotas e delírio noite afora, convertendo-se naquilo que restou para o enterro. Sobrou para o marido, que não me suspeitava, o irreversível. Jasmins para o ritual na capela. Na alcova, desfeito entre o terror dos gritos e a queda sobre o piso frio, identificaram-me parasita de aves, descuidadamente trazido ao travesseiro pela teimosia da defunta em cuidar dos pombos e faisões ao invés de deixar a tarefa aos empregados. Ser repulsivo, piloso, com o vampírico hábito alimentar instalado sob as madeixas da noiva de saúde frágil. Agora apenas um coágulo manchando a frieza do mármore, de novo à solta no vento, comunicando medos e arrastando as decepções que transitam em brancuras forjadas.
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