Uma mulher que você tem de conhecer: Mukhtar Mai [Stella Florence]
A paquistanesa Mukhtar Mai se tornou mundialmente conhecida ao viver uma das mais brutais histórias de violência contra a mulher: em junho de 2002, por conta de um crime supostamente cometido por seu irmão, Mukhtar foi condenada a um estupro coletivo. Para horror da mídia internacional e dos órgãos de defesa dos direitos humanos, apenas no ano em que Mukhtar foi violentada, outros 804 estupros coletivos foram registrados no Paquistão. A diferença, dessa vez, foi a vítima ter levantado sua voz em busca de justiça.
Há dois sistemas jurídicos diferentes, e muitas vezes opostos, no Paquistão: o oficial (caro e pouco acessível) e o religioso (islâmico). Para complicar, ainda existe a jirga, sistema tribal de justiça com suas próprias regras, incompatível com a religião e a lei. A maior parte das pessoas acaba recorrendo à jirga, na qual os conflitos mais variados se transformam em questões de honra – e a moeda corrente nessas questões é sempre a mesma: uma mulher. Tudo é permitido aos homens: cortar o nariz da esposa, queimar a irmã com ácido, violar a filha do vizinho, etc.
A tragédia de Mukhtar começou quando seu irmão, na época com 12 anos, foi acusado de falar com uma moça de casta superior. Os homens Mastói (o clã ofendido) seqüestraram, espancaram e sodomizaram o menino repetidas vezes de tal forma que a polícia teve de prendê-lo para o proteger (a prisão se deu por conta de uma acusação de estupro, desmentida mais tarde por exames de DNA). O líder religioso da aldeia tentou uma conciliação, mas foi inútil: a fim de que a honra dos Mastói fosse purificada, uma mulher do clã inferior teria de se apresentar diante do conselho tribal e se submeter à punição decretada. Mukhtar, moça ingênua, analfabeta, que ensinava oralmente o Alcorão às crianças, foi a escolhida.
No dia marcado, diante de 150 homens furiosos, Mukhtar pediu desculpas aos Mastói. O chefe da tribo ignorou seu pedido: “Ela está aí, façam o que quiserem”. A própria Mukhtar descreve o que se passou a partir de então: “Sou arrastada à força como uma cabra que vai ser abatida. Passo da noite externa para uma noite interna, em algum lugar fechado onde só a luz da Lua me permite ver os quatro homens. Nenhuma saída, nenhuma oração possível. Não sei quanto tempo durou essa tortura infame. Para aqueles animais, uma mulher não passa de um objeto de posse, de honra ou vingança. Eles sabem que uma mulher assim humilhada tem como único recurso o suicídio. Nem precisam usar armas. O estupro a mata”.
Após devolverem Mukhtar, expondo-a brutalizada e seminua diante de todo o seu clã, os Mastói retiraram a acusação contra seu irmão. Até aquele momento, nenhum homem havia sido legalmente punido por uma vingança ou crime de honra no Paquistão e, quando a justiça comum dava ganho de causa a uma mulher, não era raro ela ser assassinada. No entanto, apesar das ameaças, apesar das tentativas da polícia em distorcer seu depoimento, apesar da desgastante batalha judicial, Mukhtar conseguiu que seis agressores fossem presos e condenados: quatro pelo estupro e dois por incitação a ele, incluindo o chefe dos Mastói. Os réus apelaram e houve um novo julgamento em que, para indignação geral, todos foram inocentados. Mukhtar não teve dúvida: foi ao gabinete do primeiro-ministro e se recusou a sair de lá enquanto seus agressores não voltassem à prisão. Usando uma brecha na lei, ela ganhou mais uma batalha.
Mas nem tudo é horror na história de Mukhtar: sua tragédia possibilitou a realização de um sonho. Quando o governo lhe ofereceu uma indenização equivalente a US$ 8.500,00, ela reagiu, dizendo: “Não preciso de nenhum cheque, preciso de uma escola! Como as mulheres não estudam, elas são ensinadas a obedecer e a submissão passa de geração em geração. Temos de dar conhecimento às meninas”.
Hoje, a escola de Mukhtar é a única da região e atende 200 meninas e 150 meninos de várias tribos, de castas superiores e inferiores (até os filhos dos Mastói vão à escola regularmente). “Educar meninas é fácil, mas no caso dos meninos que nascem nesse mundo de brutamontes é uma empreitada mais difícil.” No início, Mukhtar precisou bater de porta em porta para convencer os pais a permitirem que as meninas freqüentassem a escola: foi assim que ela passou a ser chamada pelas alunas pequenas de Mukhtar Mai (grande irmã respeitada). “Meus alunos são as sementes de uma geração mais bem-educada, livre e pacífica entre homens e mulheres.” Previdente, ela optou por não depender da ajuda estrangeira ou do governo: construiu um estábulo e comprou cabras para que a escola se auto-sustentasse.
Hoje, Mukhtar usa sua voz para incentivar aquelas que ainda permanecem no silêncio: “Eu tenho uma mensagem para todas as mulheres estupradas ou vítimas de violência. É preciso falar sobre o que houve e lutar por justiça”. Ela resume sua trajetória de mulher tímida e analfabeta a símbolo mundial e diretora da sua própria escola, em apenas uma frase: “Eu aprendi a existir”.
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