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Arte de Jean Cocteau |
INFIÉIS DA PRÓPRIA VIDA
Nossa vida está perdendo
consistência. Espessura. Segurança. Estamos mais sujeitos a mudar do que a
insistir.
Estamos mais sujeitos a
nos separar do que a permanecer casados.
Estamos mais sujeitos a ir
embora do que a voltar para casa.
O mundo está tomado de
mutantes, zeligs, camaleões, transformers.
Se algo incomoda, se algo
atrapalha, o botão Desapego é rapidamente acionado.
Como não pretendemos
sofrer, caminhamos para a total insensibilidade. Deixa-se o começo por outro
começo. Não há mais meio ou fim, o que vigora é a desistência.
Substituímos a
responsabilidade pela ideia de liberdade.
Experimentar é a lei –
fazer patrimônio e futuro não tem sentido.
Anteriormente, nos
dedicávamos à família. Agora, nossa obsessão é o prazer pessoal. Danem-se as
complicações.
A aparente leveza se
assemelha a desenraizamento.
Buscamos chegar logo, não
olhar a paisagem. A velocidade é o que nos provoca. Buscamos desembarcar logo
num novo destino, não nos vale a estrada. A viagem deve ser curta e indolor,
jamais reflexiva e longa.
Não estou sendo dramático.
Na infância, tínhamos três canais de tevê. Hoje, são mais de 300. A variedade
nos conduz a não nos fixarmos em nada durante grande tempo.
Ter um romance longo é
quase uma insanidade, assim como ler um livro de 400 páginas ou assistir a um
filme de três horas.
Não oferecemos chance para
permanência, para a rotina, para a confirmação das expectativas.
Não toleramos o desgaste,
o tentar o possível antes de se despedir. Sacrifício e renúncia são expressões
banidas do vocabulário, significam burrice. “Perder tempo com alguém, com tanta
gente interessante por aí?” é o que nos dizem.
O oi já é um convite, o
tchau já é um adeus, não existe relacionamento seguro e firme que suporte a
tempestade de contradições.
São muitos apelos para
biografias imaginárias. São muitas opções de ser diferente, que nem descobrimos
quem somos.
É sempre alguém nos
chamando no Facebook ou nas redes sociais com uma história incrível,
extraordinária, afrodisíaca, que é um crime não provar.
É sempre alguém oferecendo
conselhos, dicas, sugestões.
Repare. O mundo virou
sábio de repente: todos têm soluções, ninguém mais convive com seus problemas.
Não me refiro à
infidelidade amorosa, mas ao quanto somos infiéis com o nosso passado.
Não é trocar de parceiro
ou parceira, mas trocar de tudo: largar emprego, cidade, amigos, esportes,
manias.
Troca-se de mentalidade
mais do que de opinião.
E é tão fácil descartar,
difícil é refinar a própria vida.
Mas se você concluiu a
leitura desta crônica, ainda há esperança.
Esperança de não virar a
página por um momento.
Coluna semanal, p. 2,
20/08/2013
Porto Alegre (RS), Edição
N° 17528
Fabrício Carpinejar-poeta,
cronista, jornalista e professor, mestre em Literatura Brasileira pela
Ufrgs. Vem sendo aclamado por escritores do porte de Carlos Heitor Cony,
Millôr Fernandes, Ignácio de Loyola Brandão e Antonio Skármeta como um
dos principais nomes da poesia contemporânea.
Um comentário
Fabricio que belissimo texto, e como você vê cheguei ao final e por certo leria ainda mais, pois retratou meu pensamento e sobre o que tenho escrito sempre. Perdemos o senso do seguro e nos apegamos ao do inseguro, o do certo pelo errado, da harmonia pela da atribulação, do conhecido pelo desconhecido e do interessante pelo desinteressante. Enfim, estamos nos perdendo de nós mesmos.
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