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MEU CORAÇÃO DE PEDRA-POMES [Raul J.M. Arruda Filho]

MEU CORAÇÃO DE PEDRA-POMES

Wanda Escapulária, 19 anos, coração puro como o gelo, adora sexo. Autointitulada Lawanda (pronúncia correta: Laúanda; pronúncia errada: Lavanda), imagina que o encontro entre uma vagina bem lubrificada e um pau duro resulta em fortuna, beleza, gozo. Sabe que viver está relacionado com o usufruir desse suplício. Tanto que diz: caminho rebolando, como qualquer mulher que aceitaria ser infeliz para sempre por ser bem penetrada. Sem remorsos, sem responsabilidades, sem pecados ou beijos gelados. Prefere os molhados – saliva, excitação, arrepios. Sempre restará como alternativa, nos momentos de crise afetiva ou econômica, trabalhar em um bordel.
Meu Coração de Pedra-Pomes não é romance pornográfico. Enganou-se quem pensou tal bobagem. Com o narizinho empinado de princesa etrusca, desbocada, sem papas na língua, que a língua está reservada para outras utilidades, outros sabores, Lawanda não conjuga corretamente as inúmeras declinações do erotismo comercial. Principalmente naqueles momentos em que arremessa engraçados coquetéis Molotov nas 109 páginas em que protagoniza e ironiza os cinquenta tons de fruição literária. Meu coração é um bandido, até a mim tem traído, deixa escapar em momento sentimental. Foda-se quem aposta nas boas maneiras e no processo civilizatório. Que vá para a puta que o pariu quem imagina que primeiras, segundas, terceiras impressões, fantasias, miragens, utopias, significam alguma coisa.

A matéria humana, carne e ossos, cérebro e alma, exige calma em qualquer hora. Mesmo quando percebe que Há certas manias incompartilháveis. Adeus socialismo barato. Hello, glamour! Poética imagem. Segredinho particular. Sem romance as pessoas se tornam esquecíveis. Para ser lembrado nesse vale de lágrimas urge desfilar pelas passarelas carcomidas da futilidade burguesa.

Foda mal dada é um perigo para o humor, explica Lawanda, aquela que adora ser arregaçada por José Júnior, o amante adúltero que a faz gozar com fúria bíblica. Quando ele me come de quatro, pode ver suas pendências. Depois de gozar, chora e jura voltar para a mulher original sem pecado capital. Os homens são todos iguais – embora diferentes.

Lawanda, aquela que perdeu as chaves, a carteira, o relógio. Tudo, menos a razão, talvez esteja internada no hospital, um lugar que tem um cheiro de vidas infelizes de cinema e onde, por diversos motivos, os doentes param seus gemidos e reclamos e assistem, incrédulos, ao (...) espetáculo. Trabalha como faxineira. Esfregão, balde d’água, desinfetante. O chão brilhando. Como exige Lucrécia, a cruel chefe do serviço de limpeza.

Nas horas vagas, Lawanda exerce a mui digna e rentável profissão de contrabandista. Frango à passarinho, batatinha, refrigerante. Algumas vezes fornece salvo-conduto para visitas furtivas, fugas líricas, danças antes da meia-noite. O cliente, ou melhor, o doente (particular ou terminal) solicita e é atendido. Serviço profissional. Feito por uma amadora. A irresistível vontade de trocar amor por muitos dinheiros. Breve resumo da merda que, em dias melhores, chamo de vida.

Ando pelos corredores fazendo carinho no corrimão, bem devagar, como se ele fosse um bicho manso. O bombom humor recheado de surpresas derretendo na boca como um convite ao pecado. Durante as madrugadas, nos quartos da casa de saúde, acontecem situações mirabolantes, encantadores delitos, fábulas apocalípticas. Poucos percebem a nuance. É triste quando temos nossa vida para cuidar e perdemos a dos outros.

Alucinações, rompimento amoroso, demissão do emprego, sequestro de seus besouros de estimação, despejo da casa da fanática religiosa Vandercília – complicações e mais complicações. Um vendaval de confusões. Perda de foco, imagens embaralhadas, capítulos escandalosos de novela, vida de artista, lance surrealista. Será que Lawanda continua se recusando a tomar os remédios? Será que adicionou nas traquinagens diárias uma coleção de alucinações persecutórias? Gosto dos escritores. Eles não têm culpa dos seus delírios. Por fim, enfim, o desentendimento com o policial: Devo me lembrar de adicionar no meu balanço elegíaco essa nova tragédia.


Lawanda: alegria de quem dança na chuva e não seca o céu.


Raul J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 
Todos os direitos autorais reservados ao autor.

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