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Jorge Amado e Zélia Gattai |
Biografia de um amor
Cláudio Portella
José Castello, que assina a orelha da nova edição de
Memorial do amor & Vacina de sapo, diz que Zélia Gattai escreveu os dois
livros ciente de que escrevia apenas um. Castello tem razão. O intervalo entre
eles pode ser somente o de um capítulo de telenovela para o do dia seguinte.
Este é um romance de memórias: a novela da vida real do
casal Jorge e Zélia a partir da compra de terrenos para construção da casa na
rua Alagoinhas, 33, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador, Bahia. Está tudo
ali, desde telegramas e cartas enviadas por Jorge Amado até as duas lagartixas
que moravam atrás de um quadro de Di Cavalcanti, em cima da TV da sala.
A primeira parte é de fato um memorial dos quarenta
anos vividos na casa. A segunda, Vacina de sapo e outras lembranças, remete à
teoria do grau zero da literatura, do francês Roland Barthes: todo o conjunto
de uma obra-prima literária caminha para o silêncio de quem a criou. A cada
capítulo, Zélia Gattai, como uma felina, passeia seu olhar em torno da vida ao
seu redor. E vê Jorge Amado cada vez mais perto do silêncio.
Saudade
É uma pluma a passear pelo singelo. Um reencontro com
um álbum de fotografias. Os títulos dos capítulos são simples, de um “realismo
cotidiano”, por mais redundante que possa parecer a expressão. A autora se
funde com uma biógrafa: uma biografia não da vida e da obra de Jorge Amado, mas
de um amor. Um amor que, sem pieguice, retrata lembranças, entre elas as
homenagens das escolas de samba do Rio e dos blocos de carnavais de Salvador ao
eterno criador de tipos brasileiros. Tipos, e aqui vou me desfazer da
necessidade de citar os nomes. A obra tem o tom das histórias infantis, sem
moralismo no final. Crônicas diárias que Zélia poderia perfeitamente ter
concebido para uma coluna de revista.
Mas o que se confirma mesmo é a teoria de Barthes, do
silêncio absoluto. Todas as tentativas da volta das palavras foram vãs. Nem o
índio Raoni (que saiu da casa dos Amados com cinqüenta reais no bolso,
assustado com o marca-passo do escritor), nem o pai-de-santo Luiz da Muriçoca,
possuído pelo Exu Sete Pinotes, com seu ebó, nem o Hospital Sarah Kubitschek,
nem o Cigano Andaluz conseguiram reverter o sentido do que parece ser um fato:
a teoria do marco zero da literatura. Quando se narra tudo, a contagem passa a
ser negativa e crescente rumo ao marco zero. Que não é menor que menos um, mas
também não é maior que um. A nova edição nos mata a saudade de um dos nossos
maiores e brilhantes escritores.
CLÁUDIO PORTELLA (Fortaleza, 1972) é escritor,
poeta, crítico literário e jornalista cultural. Autor dos livros Bingo! (2003),
Melhores Poemas Patativa do Assaré (2006; 1ª reimpressão, 2011; Edição em
eBook, 2013), Crack (2009), fodaleza.com (2009), As Vísceras (2010), Cego
Aderaldo (2010), o livro dos epigramas & outros poemas (2011) e Net (2011).
Colabora nas mais importantes publicações do Brasil e do exterior. Ganhou o
concurso de conto da UBENY - União Brasileira de Escritores em Nova York.
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