20 minutos, talvez 17, 15 ou menos.
É esse o tempo que ele tem para lembrar. Ele, Josewaldo, filho de Josemira e
Oswaldo, assim com "w".
Lembrar da primeira trepada, ainda menino,
mal cabendo dentro da mulata gorda que lhe enfiava pela boca o peito caído. Da
zoeira dos amigos, assim que saiu do quartinho fedorento de porra. Quis entrar
na fila outra vez; não tinha mais grana. Próximo. Lembrar da pipa que soltou logo
depois, esquecido de que já era homem. E das pingas que estremeciam o corpo e o
cérebro, tomadas com os meninos mais velhos no campinho de futebol. Cada uma
custando um favor. Mais tarde, moço feito, deu de pagar para as moças
a cerveja gelada do boteco do Angolano. Mas ainda sentia prazer era mesmo com a
pinga do campinho. Lembrar do tênis fake, comprado com
o primeiro dinheiro do tráfico. Jurava que era importado. Levou gozação
uma semana. Até que fez serviço maior e comprou um de verdade.
Foi um avião de primeira. Nunca roubou nada. Nunca
deixou um furo. Chegou logo a tenente, que soldadinho
cheirado era coisa só para os burros.
O primeiro berro ganhou
do comando. Beto Doido mandou e ele apagou o sujeito. Sem pensar,
sem olhar na cara. Tremeu. Muito. Suor pingando na boca, nos olhos, no
rego, nas mãos. Quase erra o tiro, por causa da mão molhada. Mas não
errou. Bem no meio da nuca. Pontaria de gente grande. Ganhou foi
logo o apelido de Na Mosca, coisa fina que lhe rendeu respeito e
inveja. E assim que fez o presunto, correu excitado para os
braços da mulata gorda. Com ela podia gemer e chorar e foder e brochar e
dormir, e ainda ganhar um abraço de verdade. De lá seguiu para o Angolano
e tomou quatro pingas. Deu um gole para o santo. Apenas da primeira.
Depois, era meia-noite. Hora de colher o sangue do pai filho da puta.
Enfiou o berro na boca do depravado do Oswaldo e o obrigou a chupar a morte daquele
cano frio e sujo por muito tempo, antes de atirar. Não ia mais fazer
aquilo com filho nenhum, o desgraçado; nem com os dele, nem com
os de ninguém.
10 minutos, talvez menos. É esse
tempo que sobra para Josewaldo lembrar o primeiro tiro que lhe rasgou a
carne. Por pouco não pegou na artéria, dissera o doutor. Corpo fechado,
disseram todos. Uma semana de cheirada grátis para o
doutor. Merecido.
4 minutos
para se lembrar dos olhos cor de piche de Lorena, cor de
traição. Dos beijos de estudante tímido, das trepadas que viraram amor. Tudo
feito nos lençóis de algodão que ele mesmo comprou, cheio de insegurança,
e que perfumou com cheiro de almíscar, apesar da gozação dos amigos
e dos alertas da mãe, que repetia: que mulher folgada, que mulher
estranha, que mulher é essa. Cana, meganha. Infiltrada. Pra fazer ele cair, pra
chegar no Beto Doido. Mentira, mentira! Que aqueles gemidos na cama de
lençol de almíscar eram de verdade, sim! E ele matava quem dissesse
que não. Verdade. Era o que contavam as fotos que o Beto Doido esfregou na cara
dele. Ela de uniforme, ela na viatura, ela saindo do quartel, ela beijando um
sargento na saída de um motel. Olhos cor de traição. A traição que está subindo
o morro, disfarçada pelo barulho do pagode, do funk, das rajadas
disparadas de brincadeira pelos soldadinhos cheirados. No comando, o
sargento do motel. Ao lado dele, a soldado Lorena.
Não dá tempo de
lembrar mais nada. Mas Josewaldo não sabe. Não sabe que só
tem 1 minuto. Se soubesse ia se lembrar do mar, da
morte da mulata gorda, do prêmio de dança na gafieira, das férias na Bahia, da
casa que dera para a mãe, dos homens que tinha matado: dedos-duros,
concorrentes, canas. Em segundos, vai se encontrar com eles no inferno. Pelas
mãos de Lorena que vai matá-lo com um tiro na cabeça. Olhando para ele,
sem piedade, sem suor nas mãos, com os olhos cor de piche. Cor de
traição.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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6 comentários
Texto forte e intenso sobre uma realidade crua.
Definitivamente, Cinthia, você escreve muito bem sobre qualquer assunto. Parabéns!
Fantástico, com cores da realidade!
Meus parabéns!!
Baita texto que obriga à reflexão, a pensar a realidade de quem está do lado de lá dessa vida. Maravilha, Cinthia, emocionante, comovente. Um show, assim com "w".
Vivemos tempos estranhos, em que nos cercamos de muros e grades a fim de nos protegermos da mesma violência que consumimos sôfregos, por meio do milagre da televisão e da internet. Hoje, somos quase que totalmente indiferentes à violência-espetáculo, já não nos chocamos com cenas de carnificinas, o vídeo amador, na cara da morte, minou boa parte de nossa capacidade de reagir com indignação. Apenas a literatura resguarda o poder de despertar nas pessoas uma experiência tão visceral com a brutalidade humana, como aqui foi lindamente traduzido pelo olhar e pela pena implacável de Cínthia Kriemler. Nos resta um nó na garganta, a urgência da reflexão e uma profunda pena de nós mesmos. Escrita, afiada, minha amiga. Sublime!
"a violência é tão fascinante" disse renato russo numa canção "e nossas vidas são tão normais". mais adiante "eih menino branco, o que você faz aqui subindo o morro pra tentar se divertir..." - estou buscando palavras de outros para comentar a história contada, bobagem... bastava dizer dizer que gostei. parabéns cinthia por olhar pela janela em busca da voz que não se pronuncia, e mesmo a boca amordaçada revela o grito. grande abraço, sou seu fã!
Denise, Joakim, Cecilia, Emerson e Baltazar, obrigada por terem vindo até aqui, lido e deixado esses comentários que me fizeram muito, muito feliz!
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