|
Imagem: A criação de Adão, Michelangelo |
Esculpidos pela vida
Sempre que passo em frente de alguma igreja, vasculho
com o olhar o que tem lá dentro, como tudo está organizado e me vem uma
sensação mística quase incontrolável, o desejo da redenção, seja pelo que for,
o mínimo pecado imaginado pela gente, mas que está lá, acompanhando a vontade
como um monstro irreconhecível, em destroços.
Tenho minhas crenças, meus dias em que acredito, e,
outros, que nem sei como existir – às vezes mergulho em fantasias que crio, em
devaneios poéticos, escrevo textos que alguém se identifica, ou não se dá por
total satisfação; isto cada vez mais me dá um impulso para revolucionar algo
dentro de mim; é uma espécie de vício olhar, perscrutar, observar ao longe,
tentar sentir o que está exposto, até mesmo a pele encharcada do homem que
pulsa junto ao coração.
Numa das minhas incursões pelas ruas de Porto Alegre,
vi um homem chorando, conversando consigo dentro de uma igreja, a do Divino
Espírito Santo, no bairro Bom Fim. Para muitos que olhasse para ele veria uma
pessoa invadida pela loucura, veria seu momento mais fraco; ele perambulava
dentro de si e não tinha explicação, buscava um encontro, acho que nem sabia
com quem, talvez tivesse perdido algo, ou talvez até aquele momento nunca
encontrou nada à sua altura. Ele estava sentado num banco lateral, e, acima da
sua cabeça, estava narrada em detalhes minúsculos a Via Sacra de Cristo; era
seu caminho entrecortado de pessoas que acreditaram e das que subjugaram sua
força, como se ali dentro não existisse algum resquício de humano.
Em outras ocasiões vi pessoas em estados quase
esquizofrênicos, como fala a literatura científica. Logo sinto um nó na
garganta enlaçando a alma que trago – é que minha alma é mutável, dependendo da
situação, ela se alastra pelo chão até encontrar seu outro pedaço. Tenho um
recanto espiritual que não necessita de explicações nestes momentos, ele se
encontra no lugar ideal, na hora certa, no ritmo perfeito. Sabe tirar de mim,
com toda força, a essência da ação e o submundo da reação, independente das
minhas escolhas religiosas, que não as tenho, não sigo religiões, mas me
interesso pela simbologia, as histórias, o substrato, o Deus contido em todas
elas, que se divide, abstrai, mas está, um só, no imaterial e material de todos
os homens.
Na Catedral de Notre-Dame de Paris vi uma mulher desesperada
em frente à imagem de Maria, ela se parecia com as imagens góticas, vestida do
maior sofrimento. Ela chorava, soluçava, se retorcia. Pude sentir o que havia
nela, eram tantas sensações ali, que pude sofrer junto. Talvez eu tenha escrito
algo e se perdeu com meu esquecimento, pois viver tudo aquilo era muito maior.
Talvez ela chorasse pelo amor, pelos filhos, pelo abandono, pela vida que não
viera e não pudera alcançar quando estava por perto. Ela estava tão dispersa
que quase alcançava os pés com a cabeça em seus movimentos bruscos, elevava as
mãos para o teto colorido por mãos seculares a espiá-la. Eram tantos encantos,
tantas luzes esfumaçadas, que atingiam qualquer estado de palavras, era como um
julgamento: de réus e de gárgulas.
Passei por muitas igrejas, em vários lugares, com a
câmera fotográfica posando nas mãos, apontando para o momento certo que
chamaria a atenção do meu olhar. Em Roma, visitei a Basílica di San Pietro e me
extasiei com a Pietà, de Michelangelo; a Basílica di Santa Maria Maggiore, que
está a mãe de Jesus com toda a sua pompa sagrada; A Igreja de San Pietro in
Vincoli, dedicada a São Pedro e a São Paulo, onde o Moisés de Michelangelo
enormemente brilha no mármore polido; na Igreja Santa Maria Del Popolo, existe
uma inscrição no solo que diz Mors ad coelos ( a morte é o caminho para o céu),
pensei realmente sobre isto. Consegui enxergar nessas igrejas muitas cenas humanas,
sagradas, ainda vivas.
Mas para escrever sobre homens, mulheres e suas vidas
fatigadas preciso entrar em sintonia - com a pessoa, o ambiente; preciso cruzar
minha história, atiçar minha liberdade para invadir espaços lacrados dentro das
pessoas; umas são quase imperceptíveis; outras se mostram, revelam o dia mais
obscuro que procuro. Sei que muitas delas se veem como restos que entraram em
decomposição e deixaram suas formas nuas, brancas, quase esculpidas no mesmo
mármore do Michelangelo. Eu as vejo como almas lapidadas pela vida.
Nenhum comentário
Postar um comentário