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Pastorear memórias [Celso Sisto]


Pastorear memórias

FERREIRA, Hellenice. Um menino chamado Negrinho. Ilustrações de Luís Silva. Rio de Janeiro, Escrita Fina, 2011. 40p.

É esse fio invisível chamado memória que amarra as muitas histórias, através dos tempos! Essa, do negrinho do pastoreio é uma delas. Uma das mais conhecidas e festejadas, ainda corre pelos pampas da memória coletiva do Brasil, com o selo de conto folclórico do Rio Grande do Sul.

É a época das grandes estâncias e da escravidão. O menino, sem família e sem ninguém, é o encarregado de cuidar dos cavalos do patrão. Na primeira fuga do animal preferido, o menino o encontra logo, auxiliado pelas gotas de cera, transformadas em velas. Na segunda é surrado e castigado – muito embora o sumiço do corcel tenha sido mesmo “fabricado” pelo próprio dono. Desta vez o negrinho é posto num formigueiro, até que Nossa Senhora, mais uma vez, vem em seu socorro, agora para resolver definitivamente essa situação de exploração, desmandos e castigos.


O texto é enxuto e com forte carga poética, excelente para uma narração oral.  A divisão em pequenos blocos, distribuídos ao longo das páginas, acaba por organizar o fôlego do leitor e comandar a emoção da leitura, que vai num crescendo!

O narrador parece comprometido em desenhar em palavras, a mesma alegria que comanda as ações do negrinho, ao executar trabalho que tanto ama, mesmo na condição de escravo! Cuidar dos bichos com tanta satisfação e ser castigado por nada, apenas por um injustificado rancor, é também fazer desse menino um herói; talvez uma espécie de pequeno São Francisco!

Há ainda a destacar no livro, o uso de letras capitulares para abrir cada página de texto, a opção por letras em tamanho grande, o uso de amplos espaços nas páginas, todos esses elementos responsáveis pela composição de um lindo projeto gráfico.

O ilustrador explorou vinhetas no canto direito, no alto da página, que trazem para o livro um caráter de originalidade. Essa mesmo poder criador vem à tona nos ângulos de visão mostrados nas ilustrações grandes e de páginas duplas.

Há inclusive, um aspecto soturno, que reforça mesmo a maldade, nas páginas em que predomina a cor marrom! A capa, com fundo de cor laranja e com abundância do verde da vegetação, cria também um padrão que se assemelha à chita! Uma surpresa para os olhos!

Ser feliz para sempre e ir-se embora, segurando firmemente os pelos do cavalo é uma solução muito boa; mistura o plano do real e o da fantasia, sem, contudo ter que fazer uma opção clara por um deles. Morrer? Viver para sempre? Ser salvo pela Madrinha Maria, mãe de Jesus? O leitor que decida!

A inclusão da partitura para a cantiga popular “Negrinho do Pastoreio” no final do livro traz para a narração um clima de festa e devoção, festa e louvor, festa e fé. E encerra bem o livro! Enquanto ficam ecoando nos ouvidos do ouvinte as querências e as palavras fugidias dos amplos espaços – também imaginários - próprios da geografia dos pampas.

Primeiro livro infantil da carioca Hellenice Ferreira. Primeiro livro do ilustrador angolano Luís Silva, no Brasil. Estreias cheias de bênçãos!

E para fechar toda essa beleza, sugerimos que o leitor vá também à “Lenda do Negrinho do Pastoreio” publicada em 1913, no livro “Lendas do Sul”, de Simões Lopes Neto. O livro de Hellenice guarda ecos de tal obra, assim como os abolicionistas também sempre a retomavam! A explicação, pode estar mesmo nas palavras textuais de Lopes Neto: “a lenda que perpetua sonhos de igualdade e justiça”. Precisaremos hoje e sempre dela! 

http://www.artistasgauchos.com.br/
 Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, crítico de literatura infantil e juvenil, especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país

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