Entrevista com Alexandre Carvalho: desenhista, músico e escritor [Sidnei Schneider]
Sidnei Schneider
Jornalista por formação, artista gráfico por impulso, músico por amor e escritor por compulsão é como Alexandre Carvalho se define. Nascido em Porto Alegre, pós-graduado em Teoria da Comunicação, até há pouco incorporava as letras Z HQ ao nome. Autor do livro A teoria das sombras (Oikos, 2007), da coleção Gibicróbio (BIFE, 2010), da célebre HQ Halvin & Caroldo (BIFE, 2011) e dos livros de conto/arte Esboço de uma geografia que se quer fantástica (BIFE, 2012) e Entreato (BIFE, 2012). Ilustrador freelancer e diretor executivo da BIFE editorial, estúdio de criação. Idealizador do projeto Desenhando na Rua e criador do projeto Lori-Jel, que visa espalhar HQs pelo mundo. Vencedor do primeiro e do segundo GoGoComics Awards de minicomics. Dirigiu, executou e coloriu o álbum de música experimental contemporânea Pintura Sônica (2007) e compõe trilhas sonoras para teatro e espetáculos de dança. Lançou o single Samba Triste, o primeiro samba progressivo do mundo (2010/2011). Ministra cursos de desenho, desinibição textual, escrita criativa, histórias em quadrinhos e minicomics.
Arte Ouro Preto 2013 |
Alexandre Carvalho: Posso dizer que foram se incorporando com muita naturalidade, já que me considero um adepto do múltiplo; um apaixonado pelo todo e cada uma das partes. Sou, de fato, um enlouquecido pelas possibilidades. Encanta-me o novo, o diferente; o agora, o ontem e o depois e suas mesclas; o possível, o improvável e o impensado. Trago uma curiosidade inerente à minha pessoa. Sempre foi assim comigo. Tenho uma lembrança muito antiga relacionada a esse meu jeito de ser: foi lá pelos meus seis, talvez sete, anos, quando eu andava de carro por uma estrada com um dos meus tios, e passou um caminhão enorme e pesado com rodas e pneus tão grandes quanto por nós e eu falei: Do que será que é feito um pneu de caminhão?! Assim, para ser tão grande e suportar tanto peso... E o meu tio respondeu: “Não sei e nem tenho interesse em saber. Para mim basta saber que ele existe”. Foi ali que comecei a perceber quem eu sou e como funciono. Ficou muito marcada em mim essa ocasião. Mas lembro também que foi muito penoso conviver comigo mesmo sob essas características. Nasci e cresci em um tempo em que a especialização era supervalorizada. E, mais do que os meus pais e mestres, eu mesmo me cobrava muito a escolha de apenas um caminho a seguir na vida. Por muito tempo essa foi a grande fonte das minhas angústias e sofrimentos.
Festival de Inverno - Mariana 2013 |
AC: O processo é um tanto caótico. Tem umas fases em que me dedico mais a uma ou a outra atividade, mas não por um período muito longo. Em outras fases, como a que estou vivendo agora, faço tudo ao mesmo tempo. Em um mesmo dia sou capaz de fazer música, ilustração, quadrinhos, cartum, escrever um conto, dar sequência em uma narrativa longa ou preparar uma aula. E sempre pulando de atividade ao longo do dia. Não terminando uma para começar a outra, mas indo e voltando em cada uma delas até que o esgotamento físico me vença. Mas posso, também, passar uma semana dentro do que eu chamo de estado crítico de hibernação “pré-alguma coisa”. Durante o processo passo a maior parte do tempo, na medida do possível, só e em silêncio, tendo algumas percepções e reações bastante estranhas. Ando pela rua; frequento cafés; leio; escuto música; ouço, vejo e sinto a vida acontecer ao redor de mim, porém sem participar. Como se eu fosse um antropólogo em uma terra estranha. É um processo de pura absorção. Ponho-me completamente aberto e vulnerável ao(s) mundo(s). Por vezes até adoeço, e quando isso acontece já sei que ao final terei um bom e significativo material que irá jorrar de dentro de mim no momento oportuno, sem saber ao certo em qual formato ou manifestação artística virá. Aí é só deixar fluir.
SS: Enquanto artista gráfico tens conquistado prêmios e trabalho internacional. Ao lado de obras bastante elaboradas, nas quais se adivinha um tempo longo de execução, existem outras, mais cotidianas. Nestas, tem-se a impressão de que qualquer mesa de café pode ser ocasião para um desenho, o que resulta num trabalho muito à vontade e ao mesmo tempo altamente técnico, gerando uma incrível sensação de leveza no receptor. A criação nesse campo parece desempenhar um papel relevante ou até mesmo central. Concordarias?
AC: O desenho foi algo que sempre me acompanhou ao longo da minha jornada, com algumas duras paradas e recomeços. Das minhas atividades artísticas, sempre foi a mais penosa, desgastante e prazerosa ao mesmo tempo. Desenhar para mim nunca foi um prazer fácil. É como aquela paixão de um adolescente tímido, fora dos padrões estéticos vigentes e recheado de espinhas, pela menina mais bela da escola. Dia após dia você olha para ela, passa perto, sente o cheiro dos longos cabelos recém-lavados, percebe o coração palpitar forte e o ar rarear no interior dos pulmões, se afasta e volta para casa no final da manhã com a certeza de que tudo vai dar certo no dia seguinte.
Atualmente a maioria dos meus trabalhos têm tido suas bases na rua. Costumo andar sempre com um caderno de rascunhos e uma caneta ou lapiseira no bolso. Seja em uma ida a um café especificamente para desenhar, seja em uma festa, uma palestra, uma viagem, um show ou um jantar com amigos. Passo desenhando e anotando detalhes de tudo o que vejo e o que sinto. Depois, no estúdio, trabalho a partir dessas informações. Aliás, desde que adotei essa prática as filas e salas de espera deixaram de ser um problema.
AC: Halvin & Caroldo, como o próprio nome indica, foi uma experiência que fiz em cima da famosa dupla criada por Bill Watterson, Calvin & Hobbes, lançada no Brasil como Calvin & Haroldo. Porém, no meu caso, a dupla não é nada politicamente correta. A tiragem foi pequena e se esgotou rapidamente. Na época eu pensava em fazer uma série, mas logo meus interesses sofreram mutação, o que ocorre com frequência comigo, e parti para novos projetos. Se vou reeditá-la ou dar sequência ao projeto, bem, neste exato momento não penso em fazê-lo. Mas, em se tratando de arte, tudo é possível.
SS: Como se deu a elaboração do álbum de música experimental contemporânea Pintura Sônica?
AC: Quando descobri que poderia gravar um disco em casa fiquei sem dormir para vários dias. Corri atrás de informações e dos softwares necessários. Assim que consegui tudo e aprendi a operar o material, comecei a brincar com os sons e ir em busca da experimentação direta. Peguei meu pequeno e desgastado gravador, muito utilizado por mim para reportagens nos tempos da faculdade e um pouco além, com fita cassete ainda, e fui para as ruas captar sons da vida urbana. Caminhei com o gravador ligado por entre os camelôs no centro da cidade, por exemplo, captando as suas tradicionais falas e maneiras de apresentar os seus produtos em alto e bom som. Também capturei conversas difusas em cafés e bares e pedaços de diálogos de pessoas caminhando pela rua que passavam por mim e eu por elas. Depois, em casa, através de programas de computador específicos, selecionei o que interessava, fiz os cortes e transformei tudo em “loops”, que são sequências repetidas da mesma, no caso, fala. Gravei, também, ruídos, batidas eletrônicas e guitarras, teclados e contrabaixo tocados por mim e a minha própria voz cantando ou recitando poesias de minha autoria e misturei tudo, grudando, recortando, encaixando e colando uma coisa na outra até fazer sentido, ao menos para mim. Quando completei onze porções, fiz uma matriz e copiei, em casa mesmo, todo o material em CD. Desenhei eu mesmo uma capa, imprimi em papel colorido e saí por aí a distribuir o que chamei de álbum de música experimental contemporânea. Assim nasceu o Pintura Sônica. Batizei-o com este nome porque o processo foi muito parecido com o de uma pintura em uma tela, só que ao invés de tintas, sons, e em uma tela de computador. Chegou a tocar até nas rádios locais. Hoje isso já é muito comum, mas na época, para mim, foi como descobrir a América.
SS: Qual é o tipo de som da banda de música fictícia Traquitana Vulnerável?
AC: A “banda de música fictícia Traquitana Vulnerável” nasceu de outra experimentação que em princípio não deu certo. Convidei um aluno e uma aluna minha, que depois se tornaram muito amigos meus, para irmos a um estúdio de gravação com sala para ensaios e lá fazermos uma experiência: tentaríamos fazer música, os três. Sendo que dois de nós, no caso, eles, não sabiam tocar absolutamente nada. Ficamos duas horas batendo e arranhando e não saiu, por óbvio, absolutamente nada. Mas rimos e nos divertimos muito. Então, chegando em casa, resolvi desenhar a nossa experiência. Transformei nós três em um misto de robôs e pequenos discos voadores e fiz uma história em quadrinhos sobre o nosso ensaio. Depois fizemos um blog falando da experiência. Na época havia recém surgido a banda Gorillaz formada por desenhos de animação. Ou seja, uma banda com música de verdade formada por integrantes fictícios. A nossa era uma banda com pessoas reais, mas a música tornou-se apenas ficção. Aí surgiu a ideia de fazer uma comparação: ao contrário da Gorillaz que é uma banda fictícia que faz música real, a Traquitana Vulnerável é uma banda real que faz música fictícia.
SS: E o que entra num samba progressivo?
AC: Um belo dia acordei de manhã com vontade de comprar um cavaquinho. Mas eu não queria fazer samba ou pagode. As minhas raízes musicais vêm do rock, do folk e do blues. Apesar da minha tendência ao ecletismo também na música, o que mais toca fundo na alma ainda são esses três gêneros musicais e seus derivados. Mas eu andava escutando muito aquele pessoal do movimento Mangue Beat, Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S.A., por exemplo, com aquela mistura maravilhosa de ritmos nacionais com rock e psicodelia. E o cavaco do Fred Zero Quatro andava me pegando de jeito. Só que resolvi colocar uma afinação de blues, própria para guitarra slide, no cavaco. E daí comecei a brincar com isso e fiz algumas músicas com afinações diferentes da tradicional do cavaquinho. A primeira delas foi Samba Triste. Compus durante uma madrugada tocando baixinho para não acordar a vizinhança. Tinha uma batidinha de samba meio bêbada e descoordenada em clima de final de festa. Gravei para não esquecer e no dia seguinte criei um solo com slide no próprio cavaco. Em seguida, não aguentei, peguei meu cavaco, minha guitarra, meu baixo, meu cajón e um pedal wah wah com distorção e fui para o estúdio e gravei o, até onde sei, primeiro samba progressivo do mundo.
SS: Além de A Teoria das Sombras, tens dois livros de contos/de arte, Uma geografia que se quer fantástica e Entreato. Fale um pouco sobre o foco e a forma da tua obra escrita.
AC: A Teoria das Sombras é um livro que eu levei dez anos para terminar. Mas é claro que não passei o tempo todo escrevendo. Foi um processo bastante sofrido. Escrevia, me apaixonava, me decepcionava, criava ódio, sentia saudades, retomava, parava por dois anos, perdia os originais (no começo escrevia a mão em um caderno), reencontrava, voltava a me apaixonar. E assim sucessivamente. Como uma relação com outra pessoa. Acredito mesmo que a escrita é uma relação carnal, espiritual e afetiva entre autor e obra. Durante o período em que estive escrevendo A Teoria das Sombras passei por um processo de transformação interna muito intenso. Posso dizer que hoje sou, aos menos, 70% outra pessoa. E isso se refletiu diretamente na história. Não sou do tipo que planeja um livro. Apenas sento e escrevo. Algo como Jack Kerouac e seu fluxo de consciência. E acredito que as coisas nos chegam quando têm de chegar; quando estamos prontos para elas.
Quanto a Uma geografia que se quer fantástica e Entreato, são duas obras bastante experimentais onde misturo desenho, fotografia, colagens, material reciclado e texto. A ideia é a de um pequeno conto escrito e outros contos visuais misturados ao longo dos livros, formando uma nova narrativa. As capas de ambos os livros foram elaboradas por mim a partir de caixas de leite que nós: amigos, familiares e eu, fomos juntando durante longo tempo.
Tenho me dedicado cada vez mais a projetos experimentais. Assim como aqueles adeptos dos esportes radicais viciados em adrenalina, eu encontro a minha fonte do hormônio nas experimentações. Fico muito excitado com cada nova ideia e novo projeto e todas as possibilidades, portas e perspectivas que se abrem. No meio deste ano lancei uma HQ chamada Mundo Frio, onde trabalho apenas com desenho vetorizado. Não por acaso, a estética das histórias é toda baseada na Bauhaus e completamente construída através de um programa de computador. A arte é vetorizada na essência. Gosto de dizer que o trabalho é totalmente “mousefaturado”. Ou seja, não há contato manual direto ao construir os desenhos. Justamente para, em tese, conferir a necessária frieza que dá título à obra.
Eu acredito que a literatura há muito já ultrapassou a barreira do alfabeto. Ela pode ser feita das mais variadas formas utilizando os mais diversos signos. Agora, por exemplo, trabalho em um livro apenas com desenhos, sem texto algum. São desenhos que venho coletando nas ruas já a bastante tempo. A cada viagem que faço costumo desenhar muito a vida local. E também a da minha própria cidade. Provavelmente o primeiro a ser lançado será sobre Porto Alegre, seguido de Ouro Preto, Mariana, Rio de Janeiro e Buenos Aires.
SS: Explica como é isso de utilizar um skate durante as oficinas de criação?
AC: Um dia, andando de skate pela orla do Guaíba, aqui em Porto Alegre, me ocorreu de fazer um comparativo entre o ato de andar de skate e o fazer literário. Enquanto deslizava pelo asfalto fui traçando um paralelo entre as duas atividades. Encontrei muita coisa em comum, como coragem, equilíbrio, senso de direção, dedicação, amor ao ofício, domínio da técnica, criatividade, aptidão para a diversão, entre outras. Então parei, saquei meu caderno de rascunhos e uma lapiseira do bolso, sentei no meio-fio e anotei tudo. Chegando em casa escrevi um texto a respeito e resolvi experimentá-lo em aula. Passei o texto para os meus alunos e, na aula seguinte, para testar in loco, levei meu skate e propus que eles andassem pelos corredores da Universidade. A experiência deu tão certo, que nunca mais parei de dar aulas acompanhado do meu skate. O mesmo ocorre com a música. Em determinado momento do curso ou oficina, tanto de historias em quadrinhos como de escrita criativa, eu toco meu ukulele enquanto os alunos trabalham sob influência do som. Os resultados nunca param de me surpreender para o melhor que cada um deles tem dentro de si.
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