Por que ainda produzimos
literatura?
Dia desses, um jornalista
amigo meu me perguntou sobre o sentido da literatura. Na verdade, me perguntou
além: por que ainda precisamos produzir literatura? As perguntas são bem
importantes, quando se considera que a literatura já não possui o mesmo apelo
que tinha antes do surgimento das redes sociais.
A pergunta pelo sentido da
literatura não pode prescindir de considerar o “sentido” desde sua etimologia
mais essencial, ou seja, sentido enquanto aquilo que se dá como impressão de
ser desta e não daquela maneira. Assim, o sentido da literatura acontece
sempre, dessa maneira e não daquela, em duas entidades: o escritor e o leitor.
O que remete a duas perguntas distintas: qual é o sentido da literatura para o
escritor e qual é o sentido da literatura para o leitor.
Se, por força de uma
resposta simples, como a opinião popular sugere, que a literatura serve para
distrair, então precisamos nos perguntar em que medida ela distrai o escritor
ou o leitor. De modo rudimentar, o escritor poderia dizer que escreve para
passar o tempo, como se estivesse a rabiscar distraidamente e sem a pretensão
de ter essa folha recolhida por um leitor qualquer que se demoraria a admirá-la
apenas para (também) passar o tempo.
Nesse sentido, a literatura
como mera distração, em uma época de tantos estímulos digitais, de tantas
produções em série para a televisão, de tantos filmes monumentais, perde o
estatuto e o privilégio de ser a primeira escolha para aquele que quer apenas
“passar o tempo”.
Porém, perguntar pelo
sentido da literatura, agora que esta já não acontece de ser a primeira opção
de distração, impõe perguntar o que ela representa afinal e porque sobrevive,
apesar de estar privada de ser a preferência para quem quer se distrair. Aqui a
palavra “representação” cumpre um papel importante. O escritor, quando se põe
em obra de um texto, deveria querer mesmo representar o mundo no qual ele está
aí jogado, de modo a provocar a reflexão de algum eventual leitor. Talvez pela
dificuldade de expressar-se assim como ele é e pensar do modo como pensa, o
escritor opte por representar, através da literatura, aquilo que o sensibiliza.
Mas por que ele haveria de querer se expressar afinal? Qual o sentido de se por
em obra de um texto para representar a sua visão de mundo? Não seria melhor que
permanece mudo? Que se privasse desse modo de expressão tão específico? Ora,
talvez o sentido da literatura para o escritor, enquanto representação, seja o
simples caráter de ser representativo, de querer registrar, através de uma
história, aquilo que em uma simples conversa cotidiana nunca seria construído
como um registro representativo.
Se admitimos que isso é
razão suficiente para escrever literatura, devemos recolocar a questão do
sentido para o leitor: afinal, porque alguém se interessaria em ler o registro
de outra parte? Ora, não seria a literatura um espaço onde o leitor quer encontrar
o que ele ainda não encontrou? O que ele sente falta? Mas se admitimos isso,
por que necessariamente um texto literário possuiria maior estatuto que um
texto não-literário? Talvez por que ler uma história organize as intuições que
cada um de nós tem sobre o que o mundo representa.
Então temos assim o caráter
da distração, o caráter da representação e o caráter da falta como três
aspectos que poderiam oferecer certo sentido à literatura, não fosse a
literatura (e somente a literatura) um instrumento para utilizar os recursos da
linguagem em favor do refinamento da compreensão da psicologia do comportamento
humano. Eis aí talvez o único mistério que continua sendo fundamentalmente um
mistério: as diferentes facetas do comportamento humano. A literatura fala,
através da linguagem, sobre pessoas.
O escritor quer representar o
comportamento humano e acusar as faltas que nos fazem ser tão diferentes uns
dos outros. E o leitor quer aprender, sem que necessariamente precise viver as
tragédias, os dramas, os delitos, os sarcasmos, os arrebatamentos etc, sobre as
variações possíveis desse comportamento. Ele quer preencher suas lacunas sem
que se submeta ao irreversível destino da experiência própria.
Tudo isso seria enfadonho
não fosse a linguagem e as possibilidade que só a linguagem oferece. Como
escreveu certa vez Stevenson: “A dificuldade da literatura não é escrever, mas
escrever o que você quer dizer; não para que o leitor compreenda imediatamente,
mas para afetá-lo precisamente como você quer afetá-lo”. E que significa
“afetar o leitor”? Sobretudo é mantê-lo no campo do mistério da linguagem,
enquanto desvelamos a história.
A literatura, vista desse
maneira, nos dias atuais, talvez não sirva para nada. É essa é a verdadeira
magia da literatura, pois ela implica em uma decisão – tanto para o escritor
quanto para o leitor. Para o primeiro, implica na decisão de se por em obra de
revisitar o mistério do ser humano através do mistério da linguagem; para o
segundo, implica na decisão de se deixar afetar pela obra de um escritor e
assim ampliar os horizontes da compreensão do mistério do ser humano e da
linguagem. Em sua essência mais fundamental, a literatura só encontra sentido
quando alguém decide pelo ser humano, ao invés de estar simplesmente jogado na
materialidade do mundo dos objetos que nos distraem.
Por que ainda precisamos de
literatura? Porque precisamos oferecer algum espaço para que pessoas como nós
decidam mais uma vez pelo ser humano ao invés de simplemente estar aí,
distraídas.
Cássio Pantaleoni é Mestre
em Filosofia pela PUCRS no campo de especialização da Fenomenologia e da
Hermenêutica. Escritor, finalista da edição de 2011 da Categoria Contos da
AGES, finalista do concurso de Contos Machado de Assis do SESC-DF em 2011, Segundo
Lugar no 21o. Concurso de Contos Paulo Leminski em 2010, fundador da editora
8INVERSO e profissional da área de Tecnologia da Informação. Autor de "Os
Despertos" (2000), "Ninguém disse que era assim" (2002),
"Desmascarando a incompetência" (2005), "Histórias para quem
gosta de contar histórias" (2010) e "A Sede das Pedras" (2012).
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