O primeiro livro de Neruda
Artigo publicado no site Obvious
Ninguém nasce Pablo Neruda - nem o próprio Pablo
Neruda nasceu Pablo Neruda. A grandiosidade alcançada pelo poeta chileno no
auge de sua produção é resultado, não de um milagre, mas de um processo. Quem
lê "Residência na terra" há de entender que antes do meio-dia sempre
há uma manhã crepuscular, assim sendo, Pablo Neruda inicia-se na literatura com
um livro profético: "Crepusculário".
A primeira publicação de Crepusculário consta de 1923,
quando o iniciante Neruda ainda publicava avulsamente em jornais e revistas, e
é dividida em "capítulos". O livro reúne os poemas escritos por ele
entre os dezesseis e os dezessete anos, quando, segundo o próprio, escrevia
entre dois e cinco poemas diariamente. Já no "Início" (primeiro poema
do livro), o precoce gênio avisa:
Que não são pomposas, que não são fragrantes, são as
primeiras rosas - irmão caminhante - de meu desconsolado jardim adolescente."
O primeiro capítulo é Helios. Nele, tomam destaque os
questionamentos sobre Deus (observado com ênfase em "Pantheos"),
sobre o tempo (como em "Velho cego, choravas") e sobre o amor (em
"Novo soneto para Helena"), mas em todos vê-se uma forte influência
parnasiana e surrealista:
"Se quiseres não nos diga de que ramo somos, não
nos diga quando, nem nos diga como, mas nos diga para onde nos levará a
morte..." (trecho de Pantheos)
"Porque se tu conheces o caminho que leva em dois
ou três minutos para a vida nova, velho cego, o que esperas, o que podes
esperar?" (trecho de Viejo ciego, llorabas)
"E será tarde, porque se foi minha adolescência,
tarde porque as flores uma vez só dão essência e porque ainda que me chames
estarei tão longe..." (trecho de Novo soneto para Helena)
O segundo é Fareweel, y los sollozos. Nele, o amor
toma destaque, mas o aspecto parnasiano perde força, dando espaço para uma
forte carga surrealista, na temática, e modernista, na estética. Farewell, que
parece ser o poema central (e titular) do capítulo, destaca-se como uma carta -
interrompida por parênteses literais.
"(Amo o amor dos marinheiros que beijam e se vão.
Deixam uma promessa. Não voltam nunca mais.
Em cada porto uma mulher espera: os marinheiros beijam
e se vão.
Uma noite se encostam na morte no leito do mar.
(4)
Amo o amor que se reparte em beijos, leito e pão.
Amor que pode ser eterno e pode ser fugaz.
Amor que quer libertar-se para voltar a amar.
Amor divinizado que se achega. Amor divinizado que se
vai.)" (Trecho de Farewell)
"Como saberia amar-te, mulher, como saberia
amar-te, amar-te como ninguém soube jamais! Morrer e ainda amar-te mais. E
ainda amar-te mais e mais." (Trecho de Amor)
" Amor - chegado que tenhas a minha fonte
distante, torce-me as vertentes, crispa-me as entranhas. E assim uma tarde -
amor de mão crueis -, ajoelhado, te agradecerei." (Trecho de Grita)
O terceiro é Los Crepusculos de Maruri. Segundo o
próprio Neruda, os poemas desse capítulo foram escritos por ele enquanto
admirava os poentes. Eles focam nos devaneios advindos dessa contemplação e são
tomados pelo experimentalismo modernista.
"A tarde sobre os telhados cai e cai... Quem lhe
disse que viesse asas de ave?
E este silêncio que enche tudo, de que país de astros
veio só? E por que esta bruma - pluma trêmula - beijo de chuva - sensitiva -
caiu em silêncio - e para sempre - sobre minha
vida?" (Poema La tarde sobre los tejados) "Minha alma é um carrossel
vazio no crepúsculo..." (Poema Mi alma)
"Minhas alegrias nunca saberás, maninha, e esta é
a minha dor, não as posso te dar: vieram como pássaros a pousar em minha vida,
uma palavra dura as faria voar." (Trecho de Hoy, que es el cumpleaños de
mi hermana)
O quarto capítulo é Ventana al camino. Nele, o
surrealismo ganha força total e as metáforas - quase herméticas - tomam os
poemas.
"Entretanto é tão vasto céu e roda o tempo,
entretanto. Estender-se e deixar-se levar por este vento azul e amargo!..."
(Trecho de Playa del Sur)
"Ela - a que me amava - morreu na Primavera.
Recordo ainda seus olhos de pomba em desconsolo.
Ela - a que me amava - fechou os olhos. Tarde. Tarde
de campo, azul. Tardes de asas e voos." (Trecho de Poema en diez versos)
Mary Garden interpretando "Melisanda",
personagem da ópera de Debussy.
O quinto capítulo é Pelleas e Melisanda. Não por
acaso, referência à opera de Claude Debussy. Esse capítulo põe-se como
releitura da obra, um diálogo entre os personagens.
"Melisanda Em teus braços, enredam-se as estrelas
mais altas. Tenho medo. Perdoa-me por não ter chegado antes. Pelleas Um sorriso
teu apaga todo um passado: guardem teus lábios doces o que já está distante.
Melisanda Em um beijo, saberás tudo o que calei." (Trecho de Melisanda e
Pelleas)
O sexto e último capítulo é Final.
"Vieram palavras, e meu coração, incontível como
um amanhecer, rompeu-se me palavras e se apegou ao voo, e em suas fugas
heroicas levam-no e arrastam-no, abandonado e louco, e esquecido debaixo delas
como um pássaro morto debaixo de suas asas." (Trecho final de Final)
VIVA NERUDA!
(todos trechos destacados foram traduzidos por Raul
Albuquerque)
Raul Albuquerque
Estudante de Direito apaixonado por Letras. Apesar
desse quadro, não acha que está no lugar errado, afinal, o amor às palavras
demonstra-se de diversos modos. Poeta desde que nasceu, mas só começou a
escrever poemas aos sete anos. Apaixonado por livros e música clássica. Sabe
que nunca vai conseguir se definir, logo, fica descrevendo inutilidades da própria
vida em perfis.
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