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Foto: Tom Cabral |
A musa veement
Daniel Benevides
Pilar Del Río, viúva de Saramago, fala sobre sua
carreira de 40 anos de jornalismo e da vida ao lado do escritor
Pilar não poderia ser nome mais apropriado. Magra,
alta, elegante, é ela quem sustenta, com disposição inabalável, a Fundação
Saramago, em Lisboa. Antes, a espanhola de sobrenome Del Río (também
apropriado, pois é muito fluente na fala e no raciocínio, rápido e certeiro
como uma flecha) era o apoio imprescindível do marido, José, escritor de
obras-primas, como Ensaio sobre a Cegueira e tantas outras, Prêmio Nobel em
1998.
Somados o senso de humor, a inteligência e a
integridade de ambos, formavam um casal mítico, de um glamour
romântico-intelectual comparável a Sartre e Beauvoir. Um casal de filme. Tanto
que realmente o foram, pelas mãos sensíveis do diretor português Miguel
Gonçalves Mendes. José e Pilar mostra a intimidade e o cotidiano de ambos em um
período de dois anos, entre viagens e o refúgio na ilha de Lanzarote, para onde
se mudaram em 1993.
“Eu quis assassinar o Miguel”, diz Pilar, ao lembrar
uma das cenas em que ela não sabia que estava sendo filmada. Famosa pela
veemência com que dá suas opiniões (mesmo brincando), Pilar sempre militou
pelos oprimidos: seduzida pela igreja progressista, foi monja teresiana ao
mesmo tempo que lia Marx. Lutou contra a ditadura de Franco em programas de
rádio e TV, tendo participado ativamente do período de transição democrática na
Espanha. Feminista ferrenha, ecologista e vegetariana, também defende com forte
convicção causas polêmicas, como a legalização das drogas e a eutanásia.
Dividia as convicções de esquerda com Saramago, cuidava
de sua agenda, montou sua biblioteca e traduzia suas obras para o espanhol.
Eram diferentes em muitos aspectos, mas não no essencial; quando Saramago
falava da mulher, poderia estar definindo-se a si mesmo: “A Pilar tem uma
consciência muito clara sobre o mundo em que vive. (…) A injustiça, a
indignidade, a falta de escrúpulos, a hipocrisia põem-na completamente fora de
si”. Ao que completava, com a convicção de eterno apaixonado: “Tenho muitas
razões para acreditar que o grande acontecimento da minha vida foi tê-la
conhecido”.
De fato, quem conhece María del Pilar del Río Sánchez,
nascida em Granada em 1950, fica impressionado com sua força. É assim por onde
passa nas dezenas de seminários, feiras e conferências a que vai todo ano para
divulgar a obra e as ideias de Saramago. E foi assim na Fliporto, em Olinda,
onde ela conversou generosamente com a Brasileiros.
Brasileiros
–
Sabendo tudo o que você faz e sempre com tão boa disposição, fica inevitável
perguntar: de onde tira tanta energia?
Pilar
Del Río – É o meu jeito, sou assim, não paro nunca. Sou a mais
velha de 15 irmãos, então sou muito ativa desde pequena. E detesto essa coisa
que muita gente faz de dizer “não sei…”. Como não sabe? Se você quer algo da
vida tem de saber tudo o que se passa a seu redor. Conheço jovens que dizem
estar cansados com 20 anos… Como podem? Precisam dar a volta ao mundo três
vezes para ficarem cansados. Durmo quatro horas por noite. É o suficiente.
Brasileiros
–
Você não é muito exigente consigo mesma?
P.D.R. –
Sou e, ainda assim, não consigo ser a pessoa que eu deveria ser.
Brasileiros –
E quem você deveria ser?
P.D.R. –
Uma pessoa mais capaz, mais completa, mais útil. Não consigo. Tenho uma
responsabilidade e um trabalho muito grandes, de ajudar a abrir portas para a
obra de Saramago. Mas mesmo com todo o tempo que dedico à Fundação, sinto que
meu papel é ínfimo. Meu grande pavor é que a dimensão fabulosa de Saramago – e
não digo isso por adoração, mas por acreditar mesmo que sua obra é universal,
admirável e necessária – se perca ou fique relegada a um espaço pequeno.
Brasileiros
–
E o que, para você, torna a obra de Saramago tão necessária?
P.D.R. –
Acho que Saramago tinha um grande respeito pelo leitor, de forma que quem o lê
se sente um ser humano mais inteligente.
Brasileiros –
Não foi exatamente isso que você disse para ele quando o conheceu?
P.D.R. –
Sim, e é verdade, ele desperta ideias e sensações que te fazem parar e dizer:
por que não me ocorreu isso antes? Em sua obra está construída a possibilidade
de um mundo que não precisa de poder e riqueza, um mundo que se faz
simplesmente com honestidade e inteligência. Mas abdicamos disso todos os dias
e não nos damos conta. Esvaziamos o edifício democrático. Nós, cidadãos, somos
muito frágeis. E não nos damos conta de que se os governos são corruptos, é
porque a sociedade é corrupta. Se um governo é indiferente, é porque a
sociedade é indiferente. Os governos nascem da sociedade, não vêm de Marte
Brasileiros –
Muita gente diz não ver mais distinção entre esquerda e direita, como é isso
para você?
P.D.R. –
Acho que as políticas econômicas de governos de esquerda e direita não se
distinguem muito. Mas quero que haja governos de esquerda. Para mim, há muita
diferença, por exemplo, que no Chile governe a Bachelet, e não o Piñera. Na
Espanha, não é o mesmo para mim que governe o Partido Socialista ou o Partido Popular.
Para os radicais de esquerda, é tudo a mesma merda. Para mim, não. Se as
políticas econômicas não são distintas, há diferenças importantes nas políticas
sociais.
Brasileiros
–
Conta um pouco da sua trajetória em rádio e TV.
P.D.R. –
Comecei no rádio, e logo fui para a TV, sempre colaborando com a imprensa
escrita. Era basicamente jornalismo político disfarçado de informação cultural,
para enganar a censura. Fui crescendo até ganhar espaço nacional. Todas as
ocasiões eram boas para colocar em evidência que existiam outras pessoas além
dos franquistas, e outras formas de entender a vida. Fiz algumas reportagens
que hoje me surpreendem: era ousada e não sabia…
BIBLIOTECA
SARAMAGO
Construída na ilha de Lanzarote, na Espanha, como um
presente de Pilar ao marido, a biblioteca tem cerca de 15 mil livros e serve
como sala de encontros e atividade
Brasileiros
–
E fez também grandes entrevistas. Lembra de algumas?
P.D.R. –
Entrevistei pessoas que nem podiam crer que existissem. Claro, sabia quem eram,
mas descobria nelas mundos impressionantes. A verdade é que éramos militantes
de uma forma de estar no mundo, tanto nós jornalistas, como artistas, políticos
na clandestinidade, escritores… Sentíamos que estávamos criando um mundo
distinto. Não havia objetividade jornalística, se tratava de abrir caminhos.
Lembro da entrevista com (Miguel Ángel) Astúrias em Sevilha, e de haver contado
como tinha sido a seu filho, que estava na guerrilha. Lembro de ter tido
problemas por dizer que Neruda era comunista; lembro da gentileza de um
escritor que colocou seu paletó em meus ombros e disse, com delicadeza, que
minha blusa estava manchada com leite; lembro de subir ao trem que trazia
Rafael Alberti do exílio, convidada pelo sindicato de ferroviários… Enfim,
lembro de mil batalhas de quem já tem 40 anos de profissão. E nomes preciosos,
como o escritor Manuel Vázquez Montalbán, cuja morte prematura dói todo dia. E
claro, entrevistei escritores universais e magníficos como José Saramago e
políticos interessantíssimos, de esquerda e direita, como Aldo Moro…
Brasileiros
–
Você falou também com admiração de Pilar Manjón e uma comandante zapatista…
P.D.R. –
A comandante zapatista e Pilar Manjón, mãe de um jovem assassinado em um ato
terrorista, falaram aos parlamentos do México e da Espanha, e as duas foram
deslumbrantes, fizeram emudecer seus países, falaram com emoção e simplicidade
dos assuntos mais importantes. Deram lições de dignidade, que nem quero nem posso
esquecer nunca. Tampouco a alguns políticos da transição espanhola que
entrevistei e dos que, em certos casos – Adolfo Suárez, Santiago Carrillo –,
recebi confidências extraordinárias, como, por exemplo, o que intimamente
haviam sentido diante da tentativa de golpe de Estado, ou quando o Partido
Comunista foi legalizado. Creio que essas confidências justificam uma vida de
jornalista.
Brasileiros
–
Lembra do período de monja teresiana? Do “ver, ouvir e não calar”? Como era a
sua atuação?
P.D.R. –
Fui teresiana porque sentia a urgência de ser útil. Conheci o funcionamento da
Igreja, vivi o Vaticano II com expectativa que não correspondia à minha idade,
aprendi sobre Santa Teresa, mas um dia me disseram que eu estava empenhada em
viver de uma forma que não me deixava feliz. Pode-se dizer que me recomendaram
a felicidade; acho que ninguém jamais foi despedido com tanta elegância. Anos
mais tarde me dei conta de que tinham razão.
Brasileiros – Você participa ativamente na escolha dos
vencedores do Prêmio Saramago?
P.D.R. –
Participo como os outros jurados, lendo os livros que chegam e tendo de optar
por um, o que é terrível, pois vários merecem o prêmio… Sei o quanto é
importante ganhar esse prêmio para os autores, pois dá a eles nome e prestígio.
Me dá muito orgulho ver como a literatura em português está se renovando e que
José Saramago está por trás disso tudo, com sua generosidade sem limites.
Brasileiros –
Em linhas gerais, de que livros é composta a Biblioteca Saramago?
P.D.R. –
A biblioteca geral está em Lanzarote, na Espanha. Em Lisboa, só há uma seleção
que José Saramago deixou em seu escritório pessoal, quando se construiu o
edifício que abrigaria a biblioteca na ilha. Tem de tudo: as leituras de uma
vida – ou de duas vidas, porque estão meus livros em espanhol –, os livros que
os amigos iam mandando, os comprados com dificuldade por causa da censura ou da
falta de recursos e os mais recentes, os utilizados para pesquisa, os
dicionários, os livros de História e Filosofia, os de entretenimento, os lidos
várias vezes e os que nunca foram abertos… Não é uma biblioteca valiosa do
ponto de vista acadêmico, simplesmente está cheia de vida porque José Saramago
dizia que cada livro traz dentro de si uma pessoa, portanto é uma reunião de
gente, que eu quis preservar assim para que quem a visite ouça as vozes desses
autores que nos chamam.
Brasileiros –
Você já declarou que escreve para “queimar a página”. É uma mulher de paixões
fortes, a quem muitos atribuem qualificativos como firme, veemente, inflexível,
corajosa e com senso de humor agudo. Nunca teve momentos em que fraquejou ou
viu-se perdida em dúvidas?
P.D.R. –
Não passa um dia que eu não tenha dúvidas sobre tudo. E são dúvidas tão
profundas que não se podem resolver, eu nem sequer comento com ninguém. A
segurança que eu aparento vem de saber que tenho de terminar um projeto que tem
a ver com uma cultura, uma língua e um país. E que esse projeto foi encomendado
a quem não pertence a essa cultura nem a essa língua – ao país sim, pois pedi a
nacionalidade portuguesa. Sei o que é a solidão do corredor de maratona. Quanto
ao humor… Sobretudo, rio de mim mesma o dia inteiro. E isso ajuda muito!
Brasileiros –
Para você, não havia diferença entre o Saramago sujeito e sua obra. Como
tradutora, você se põe na margem oposta, invisível.
P.D.R. –
Que o autor queira ou pretenda ser invisível é algo em que não acredito. Os
autores estão sempre presentes em suas obras. Não é que contem suas vidas,
muitas vezes anódina, mas são a matéria central de seu trabalho, seja narrando
adultérios, viagens à Lua ou desmistificando os livros sagrados. Quem tem de
estar invisível, ainda que tenha de entregar-se ao texto 100% é o tradutor, que
será sempre um alquimista desconhecido e sofredor, pois sabe que nunca
conseguirá transformar ouro em ouro, no máximo em prata…
Brasileiros –
E como começou a traduzir Saramago?
P.D.R. –
Eu havia traduzido várias edições de Os Cadernos de Lanzarote, conferências, O
Conto da Ilha Desconhecida, cartas e teatro. Comecei a traduzir os romances
porque o tradutor Basilio Losada teve um problema com a vista, enquanto
traduzia Ensaio sobre a Cegueira. E não deixei escapar a ocasião. (Leia
comentários sobre as traduções ao lado.)
Brasileiros –
Qual, afinal, é a cena do filme José e Pilar que você detesta tanto? A da
cozinha?
P.D.R. –
Essa cena me dá tanta raiva que não quero nem comentar, mas não é a da cozinha.
Tenho raiva de mim mesma de não ter colocado limites… Consequências da
liberdade.
Brasileiros –
O que espera da Fundação para os próximos anos?
P.D.R. –
Fazer com que a sede, a Casa dos Bicos, decole como um foguete. Chegar a todos
os leitores do mundo, com os livros de Saramago e também com a revista
eletrônica Blimunda, que editamos. Conseguir convencê-los de que ou assumimos
nossos deveres como seres humanos ou perderemos os direitos, que temos o dever
de exigir os direitos. Quero convencer os investidores do Brasil que apoiar a
cultura e o conhecimento é também lucrativo e espero que me chamem. Quero que a
Fundação, tanto em Lisboa como a Casa de José Saramago, em Lanzarote, construa
pontes. Quero ver, da Fundação, como se espalha a generosidade de José
Saramago, que compartilhava tudo.
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