Faraó
Ainda
ontem estive lendo um livro que trata da relação do homem com os animais. A
nossa sempre foi intensa. Outrora, crescer no mato, mesmo com os privilégios
que tive, o ambiente do Macondo de meu avô Ioiô, rico de reptos sociais e
culturais, era um desafio. Até então, tínhamos a caatinga vasta, em dois
tempos: verde e seco: dia e noite: terra e céu. Não. O mundo não era outro. As
perspectivas, sim. Aos meus olhos, criança silenciosa e atenta (“O sangue deste
me saiu ao da avó, sangue de índio, que menino mais calado”, murmurava minha
mãe, minha grande contadora de histórias familiares.), ele era vasto. O
silêncio da caatinga dizia dos bichos e das almas penadas.
Meu
pai amava os animais. Eu, todos nós. Os animais eram os olhos, mesmo aqueles
que metiam medo, como uma vaca parida. Meu pai teve um perdigueiro puro, coisa
rara no sertão. O gado era delicioso nas manhãs recém-lavadas pelo orvalho –
hora da ordenha: o cheiro: folhas e estrume. Dia de matar boi era uma festa. A
vaca gorda posta de frente, em sentido, os grandes olhos à espera. Meu pai
mirava-lhe a testa (com uma pistola, o homem era louco por tecnologia, só não
conheceu bem o celular...), bangue! A vaca ia ao chão. Sangravam-lhe o coração,
esfolavam-lhe o couro: a meninada vibrava.
Alguns
anos depois, quando morávamos naquela cidade cujo nome não ouso pronunciar,
tanto eu a detestei, vieram contar-nos que a vaca Petrinha tinha caído nas
pedras do tanque – geografia estranha, a do Macondo de meu avô Ioiô: de um
lado, terra boa; de outro, longos trechos de pedras, com reentrâncias naturais
que, nas primeiras chuvas, transformavam-se em piscinas naturais – haja
plantas, animais, meninada e sol! Meu pai foi ver a Petrinha. Tinha quebrado
ossos, contou-nos ao chegar, e botaram a pobrezinha num jirau. Semanas se
passaram, vieram contar que Petrinha tinha morrido. Nós choramos.
Tinha
eu os meus animais – os passarinhos livres da caatinga. E um gato rajado. Eu e
o meu irmão caçula cuidávamos dele. Quando nos mudamos para a cidade, o gato
foi também. Sumiu um dia depois. Desde então, era um gato atrás do outro. Eu,
particularmente, gosto muito da espécie. Livre, higiênico, meditativo. Minha
última cria é um siamês. A minha alegria, o meu tormento: Faraó passava horas
farejando paredes, portas, móveis. Subia nos lugares mais inusitados.
Inesperadamente, começava a correr por toda a casa. Enrolava-se, mordendo as
patas traseiras. Eu ousava passar perto, devagar: ele pulava no meu calcanhar,
simulava uma mordida (doía e tirava sangue) e fugia às loucas. Eu ria. Adorava
água, tomar banho uma vez por semana, água fria.
Faraó
era lindo, o olhar dele de madrugada, quando eu ia abrir a porta da cozinha
para lhe dar a primeira ração da manhã... Olhem-no nos olhos dele: a doçura...
Lygia
Fagundes Telles, para o meu adeus: “Ele fixaria em Deus aquele olhar de
esmeralda diluída, uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque
gato não obedece. Às vezes,quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende,
mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a
memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão.
Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo.”
Segunda
passada fui comprar a ração quinzenal de Faraó. Na volta, eu notei: ele não
veio ao meu encontro. Estava deitado no seu lugar preferido, uma cadeira
emborcada sobre a mesa, na varanda. Os olhos opacos, ele miou: miado de dor.
Estranhei. Água limpa, ração nova no prato. Faraó continuava deitado, e olhava
para mim. “Nunca mais pego outro”, dizia minha mãe. “Não temos sorte com
gatos.” À tarde, Faraó começou a miar. Punha-se de quatro, como se quisesse
fazer suas necessidades – não em sua caixinha, estranhei. Ao anoitecer, Faraó
soltou o seu primeiro lamento de dor – e lembrei-me dos gritos de minha mãe,
quando seus rins pararam. Passei a noite toda em vigília. De madrugada, não
resisti: soltei um berreiro, liguei para minha irmã e contei o que estava
acontecendo. Cidade pequena, sem veterinário... Fui ao Google, escrevi um
pequeno texto, descrevendo o estranho comportamento de Faraó. A resposta veio
rápida, num site para gatos:
“Cerca
de 3 a 8% dos gatos machos atendidos nos EUA apresentam a FLUTD como queixa
primária. Basicamente é o gato macho que está com uma obstrução na uretra, há
alguns dias, sem conseguir urinar. O gato fica na posição de urinar muito
tempo, urina em gotejamento, podendo haver sangue. Quando o animal está
obstruído e não consegue urinar, a bexiga fica repleta e a urina começa a
retornar para os rins. O gato vai apresentar a primeira complicação grave, a
hidronefrose. Os rins não vão filtrar adequadamente e uma doença que era do
trato urinário inferior (bexiga e uretra) passa a acometer também o superior
(ureteres e rins). Então além de não urinar o animal também vai apresentar
anorexia, vômito e desidratação.”
Faraó
está deitado num tapete, na varanda. Não mia mais. A boca está cerrada, os
olhos baços. “Faraó!” – ele acena balançando o rabo. A morte será lenta.
Anorexia, vômitos e desidratação. A dor. E a vida. A vida é o nosso único
trunfo – ninguém pediu para nascer. Se pudesse, Faraó, procuraria um
veterinário e pagaria os olhos da cara para que você fosse sacrificado. O que
nos ensina a dor? Choro – de raiva. Um morto é um morto, mas a dor... Eu não
resisto – e olhe que fui formado na dor. E choro. De raiva.
Mas
não desisto. Já penso no próximo gatinho, por Deus! que não desisto, porque
viver é a nossa opção maior.
Você
sabe disso, Faraó, é o que me dizem os seus olhos.
Milton
de Oliveira Cardoso Junior, baiano da Chapada Diamantina, é graduado em Letras,
Língua Portuguesa e Suas Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia,
Uneb, Campus XVI, Irecê, Bahia. Surdo desde os dez anos, em consequência de
meningite, tem dificuldade em aprender Libras, talvez pelo fato de ter começado
a ler muito cedo. Entre os seus escritores preferidos, encontram-se Thomas Mann
e Guimarães Rosa.
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