Diálogos
do cotidiano - "Queimando a rosca"
Outro dia estava na fila
do banco, interminável. Precisava contratar um serviço de previdência privada e
não tinha outro jeito se não esperar. Nessas ocasiões, sempre carrego um livro,
ou qualquer coisa pra ler, embaixo do braço. Ao meu lado estava sentado um
homem que, pelo que percebi, deveria ter uns trinta e poucos anos. Ao lado dele
estava outro, magrinho, mais moço e ainda cheio de sonhos. Eu estava lendo e
não prestei atenção na conversa, até que a senha do rapaz cheio de sonhos foi
chamada na fila do caixa.
Quando ele voltou,
sentou-se novamente ao lado do que eu supunha ser seu amigo. Este então
pergunta:
- O que você veio pagar?
- Inscrição de um
concurso. (Por isso disse que ele era mais jovem e ainda cheio de sonhos)
- Concurso do quê?
- É da Marinha.
- E o salário compensa?
- Eu nem sei exatamente
quanto é, mas quero passar num concurso.
- Cuidado cara! Dizem que
a Marinha é o lugar onde os caras mais queimam a rosca. Cuidado pra não entrar
lá e começar a queimar a rosca também.
Olhei para o lado e o
rapaz cheio de sonhos estava tão estupefato quanto eu. Sua boca estava
entreaberta, os óculos tinham descido um pouco mais sobre o nariz. Ele gaguejou
qualquer coisa, tentando dar continuidade à conversa, mas desistiu:
- É...É...bem, vou nessa.
Ainda tenho que almoçar.
O suposto amigo do rapaz
cheio de sonhos deu tchau e, por um milionésimo de segundo, podia jurar que o
vi dar uma coçada no saco e cuspir no chão. O livro que eu trazia em minhas
mãos falava sobre homossexualidade e psicanálise. Um trabalho de
despatologização do tema. Meus olhos, que estavam vermelhos de tão enervados,
faiscavam na direção do grosseirão e quando dei por mim, já havia enrolado o
livro e enfiado garganta abaixo no sujeito. E eu disse:
- Tome aí seu grosseirão
idiota! Agora engula o que você disse.
Ao acordar do meu
devaneio, estava com as unhas cravadas no livro, sentindo uma dor de raiva. Não
sei se fiquei mais brava pelo comentário idiota ou por desfazer do sonho do
rapaz cheio de sonhos. Fiquei imaginando o sentimento de solidão com que o
rapaz deixou o banco. Senti vontade de correr atrás dele e dizer:
- Como existe gente babaca
nesse mundo né? Não ligue pra o que ele disse.
Ao mesmo tempo me senti
tão impotente. Eu estava com o livro nas mãos e queria mesmo ter socado na cara
dele, mas não fiz nada, nem fui atrás do sonhador, nem soquei o grosseirão.
Continuei esperando na fila, lendo a teoria sobre a despatologização da
homossexualidade. Só o que eu pensava era que os livros hão de mudar o mundo.
Mais uma vez pensei que o meu livro podia mudar a cabeça daquele idiota sentado
ao meu lado, e bem que eu podia ter dado uma livrada na cara dele. Mas
responder imaginariamente, partir para a agressão, seria tão grosseiro quanto.
Será que eu tinha o direito de interferir na conversa alheia? Seria lícito
pedir licença e dizer:
- Meu senhor, com licença,
mas acho que está enganado quanto à sua opinião. A homossexualidade não é uma
doença. O senhor precisa tomar mais cuidado com o que diz. Pode ser processado.
E além do mais, não se diz esse tipo de coisa a uma pessoa que está cheia de
sonhos. Bastaria de dissesse: “Boa sorte na prova!”. Entendeu?
Eu organizava o discurso
mais educado possível para falar com ele e, quando estiquei minha mão para
tocar seu braço, sua senha foi chamada no painel e ele se foi, carregando suas
certezas. Quando era mais jovem, eu queria mudar o mundo. Depois que cresci,
descobri que o mundo é bem maior que meu umbigo.
Às vezes me estico para tentar
alcançar as dores do mundo, mas minhas pernas são curtas e eu me sinto tão
impotente! Faço escadas palavréticas para tentar subir um pouquinho mais, mas é
difícil achar que já está suficiente.
Era só ele ter dito: “Boa
sorte, cara!”.
Isloany Machado -
Psicóloga clínica (CRP 14/03820-0) Psicanalista, membro da Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum do Campo Lacaniano de
MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo
Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora
da ciência e costuradora de palavras por opção.
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