AMOR EM DOIS TEMPOS
Estou contando minha
história
para não perdê-la, já que o esquecimento é ativo.
Depois de um casamento monótono, Vivian, que
mora em São Paulo, acompanhada de uma amiga, Hilda, vence uma série de medos,
inclusive o de viajar de avião, e protagoniza, em Salvador (BA), a história de
uma mulher que não consegue dar fim às cinzas do marido. No cenário que
emoldura – de muitas maneiras – uma espécie de cerimônia do adeus ao marido
recém-morto, oscilando entre a dor e o patético, abre-se espaço para o
deslumbramento – que se apresenta no proscênio e encena a dramaturgia do
inesperado. As lembranças do passado contaminam o presente narrativo quando
Vivian reencontra Lauro, velho amigo de infância e adolescência. Amigo? Não,
ele foi mais do que isso. Foi o primeiro amor, um conjunto de promessas que não
se cumpriu, a cicatriz que ainda lateja depois de muitos anos. Ao mesmo tempo,
essa volta ao mundo pretérito constata que A vida passou e não nos levou junto;
ao contrário, se desfez de nós.
Vivian, próxima dos
setenta anos, protagonista e narradora do romance Amor em Dois Tempos, de Livia
Garcia-Roza, percebe – de forma atabalhoada– que o destino sente prazer em
transformar as histórias de amor em brinquedo. Por isso, seu relato se
caracteriza por ser uma espécie muito particular de ajuste de contas com o
abismo dos desencontros. Simultaneamente, por se tratar de uma narrativa
parcial, vista apenas pelo olhar de uma das partes envolvidas da trama, são
muitas as situações inconclusas. O destino das cinzas do marido morto reprisa
um espetáculo do gênero pastelão. A amizade com Hilda, que se mostra mais
preocupada com a urna funerária do que a viúva, deteriora lentamente. Da mesma
forma, o relacionamento com as outras amigas, através de telefonemas que
terminam abruptamente, mostra um alheamento que assusta. O relacionamento com o
filho, Carlos Ozório, configura o leviano. As poucas conversas telefônicas e o
modo com que os dois se relacionam é reafirmado, em diversas situações, com uma
frase distante da vida doméstica, oposta ao mundo domesticado pela convivência
social, Lembrei das palavras de meu pai: “Não seja uma mater dolorosa, minha
filha”. Ou seja, Vivian não quer sofrer pelas perdas cotidianas, não quer ser
uma “carpideira” do próprio luto. Diante da possibilidade de reatar o namoro
com Lauro – que está casado e, possivelmente, não vai se separar da esposa para
viver “a grande aventura amorosa” –, ela, como se fosse alguma heroína de algum
romance do século XIX, constrói um fosso ao redor de seu castelo imaginário.
Ignorando as inúmeras
amarras que precisou suportar ao longo do período em que esteve casada, Vivian,
refletindo a condição de viúva, estabelece como dístico existencial uma
declaração pouco razoável, (...) em lugar da quietude, escolhi estar ao lado do
desejo. O leitor não se surpreende quando ela classifica o comportamento do
marido morto com outra frase feita exclusivamente para a ocasião, Nunca se
excedia em nada, cabia inteiro dentro de si, enquanto eu transbordo. Há algo de
descomedido nessas duas declarações, nesses dois momentos de dispersão
emocional, pois Vivian leva uma vida convencional, muito distante de aventuras
e perigos. Talvez seja apenas o contraponto que julgou adequado para as
inúmeras desculpas que empilha enquanto tenta explicar o complicado
relacionamento com Lauro – que se mostra mais interessado em manifestar as
vantagens da vida burguesa (restaurantes, vinhos, erudição musical) do que em
namorar.
Diante do amor, a libido
está mais ligada aos sentimentos do que à atração física. Por isso,
multiplicando os elementos biográficos, ficcionalizando a vida inteira que
poderia ter sido e que não foi, como escreveu Manuel Bandeira, Vivian, a
escritora, reconstrói a história de amor de um casal que se conheceu nos tempos
felizes da infância, se perdeu no transcorrer da vida, se reencontrou por acaso
na velhice e sonhou em recriar o mundo deles.
Amor em Dois Tempos, mais
do que uma faísca de esperança na história de duas pessoas que superaram o
desgaste do tempo, celebra a vida e o afeto.
Raul
J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008),
publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no
Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional,
segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias
como se fossem uvas”.
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