Amigos de bar
Não foi por acaso que quando
ela entrou no boteco todos silenciaram, observando atentamente cada gesto que
improvisava. Quando a beleza era muita, os elogios não demoravam a surgir, mas
naquele caso a beleza era demais, emudecendo a todos, casados e solteiros, uma
rara unanimidade.
Houve até quem trancasse a respiração para não contaminar a
cena. Os únicos ruídos que se ouviam eram o “toc-toc” do salto alto pisando
delicadamente o chão a caminho do balcão e o “tantã” dos corações masculinos
batendo mais apressadamente que o normal, marcando o compasso da cena.
Há muito tempo que tinham o
hábito de dar nota para toda e qualquer mulher que lá entrasse. Um número
seguido de uma característica ou adjetivo. O número referia-se a nota e o
complemento justificava o voto, para mais ou para menos. Nunca o óbvio. O óbvio
não precisava ser dito! Algo como “oito e meio, orelhas de abano” ou “sete,
joelhos juntos”, ou ainda “nove, bunda quaaase perfeita”. Assim mesmo, direto,
no seco! As avaliações tinham valor de sentença de última instância, portanto,
irrecorríveis! Todo julgamento provocava um esticar de cabeças coletivo a fim
de verificar a característica abordada. Naquele caso, porém, ninguém se atreveu
a dar nota. Não era preciso! Melhor faziam simplesmente observando... mudos,
boquiabertos, fascinados. E foi assim, em silêncio, que acompanharam cada
gesto. O Jonja, esfregando os olhos para certificar-se de que não se tratava de
uma miragem; o Afonso, pousando a mão sobre o coração, querendo acalmá-lo; e o
Paulão, derramando uma fração do conteúdo do seu copo para o Santo,
reconhecendo o presente divino. Até o Tigrão, um ateu confesso, ergueu as mãos
para os céus agradecendo tanta perfeição.
O caminhar felino, o decote
entre maroto e ousado, os cabelos balançando ao vento (mesmo sem uma brisa
sequer soprando lá dentro), o olhar lânguido e tímido... Tudo nela parecia
feito propositadamente para seduzir. Teve até quem procurasse as câmeras
escondidas, supondo tratar-se de alguma gravação de comercial ou mesmo uma
pegadinha desses programas de auditório. A cena era perfeita demais!
E foi sob o olhar atônito,
indiscreto e atento dos felizardos que lá estavam, que aquele mulherão se
debruçou completamente sobre o balcão, ficando delicadamente na pontinha dos
pés. Com o braço esticado ela fez sinal para o Tonho, dono do boteco, tentando
chamar sua atenção. Como se precisasse!
– Eu queria pedir uma
bebida... – eram tantas as bocas abertas acompanhando a cena que a frase ecoou
no ambiente.
– E ela ainda... “parla”! –
observou o Paulão incrédulo, num sussurro para o amigo, evocando a ordem de
Michelangelo diante da perfeição que acabara de esculpir.
– Uma bebida? Você disse uma
bebida? É pra já! – adiantou-se o Tonho, com uma disposição jamais vista,
caminhando prontamente em sua direção, enquanto usava o pano que estava
pendurado na cintura para enxugar o suor que se acumulava na testa – Que tal um
gin tônica? Ou um Campari? Quem sabe algum coquetel sem álcool, hein? – propôs, simulando o gesto de chacoalhar uma
coqueteleira no ar.
– Na verdade eu estava
pensando em um chope bem gelado!
A resposta causou um
“ohhhhh” de admiração naqueles que acompanhavam a cena, ou seja, absolutamente
toda a frequência do bar. Não era possível! Não pediu caipirinha de kiwi com
adoçante, nem batidinha de morango. Fantástico! Só faltou aplaudirem...
Todavia, mais admirados ainda ficaram quando a viram monitorar de perto o
serviço do Tonho, prescrevendo com a autoridade de quem é do ramo:
– Capricha no colarinho,
sim?
Foram ao delírio! Seria
mesmo possível?
Depois de tomar um longo
gole e limpar o “bigode” de espuma com o antebraço, olhou em volta avaliando os
olhares intrusos que a dissecavam, analisando-a minuciosamente. Mesmo assim, em
vez de se mostrar incomodada, levantou o copo de chope num gesto de brinde,
prontamente acompanhada por todo o boteco.
– À paz mundial! – gritou o
Afonso em resposta, empolgado, recebendo os olhares de estranhamento dos
colegas. E foi assim, com esse brinde, que a batizaram, acolhendo-a
fervorosamente no bar do Tonho, até então um “clube” rigorosamente vedado às
mulheres.
Não tardou para a beldade
conquistar um lugar à mesa. Na verdade, vários lugares, já que todos queriam
tê-la ao seu lado. Num surto coletivo de simpatia, ofereceram-lhe tábua de
frios, porção de queijo de búfala com tomate seco e, pasmem, até um carpaccio
surgiu por conta da casa. Nada disso! Agradeceu a cada um com um beijinho no
rosto, mas explicou que estava com fome, preferindo, portanto, “encomendar” um
x-salada completo. “Perfeita... Se melhorar estraga!”, disseram-se mutuamente
com trocas de olhar e balançar sutil de cabeças, para, em seguida, pedir ao
Tonho uma rodada de sanduíches e seus molhos gordurosos.
O papo mais que fluía:
rolava solto! Falaram de futebol, de vale-tudo, de carros, modelos de moto...
Alguém até arriscou puxar assunto sobre a novela das oito, tentando roubar sua
atenção, mas foi frustrado pela informação de que ela não assistia a novelas.
Que noite! Já eram quase cinco da manhã e ninguém queria sair da mesa, pelo
menos até que ela fizesse menção de se retirar. Assim, como ninguém se mexia
por receio de deixá-la sozinha com os remanescentes, coube-lhe a iniciativa de
pedir a “saideira”.
– Um brinde ao Mengão! – Ela
propôs, citando a escalação completa do time, incluindo os reservas.
Estavam tão felizes que
todos brindaram... Até os botafoguenses e vascaínos!
* * *
No dia seguinte a turma
estava novamente toda lá, no bar do Tonho, como sempre, mas alguns mais
perfumados e mais bem arrumados do que de costume. Todos se entreolhando numa
expectativa muda quanto ao retorno da nova musa do boteco do Tonho.
O papo seguiu arrastado,
monótono, aguardando estrategicamente o momento em que ela finalmente chegaria
para revelar-se mais interessante. Parecia até que estavam economizando propositadamente
os seus melhores assuntos. Assim, quando os inúmeros olhares para a porta
finalmente divisaram a chegada da mais nova integrante da turma, pôde-se ouvir
um suspiro de alívio que poderia ser traduzido fielmente como “Ufa! Ela
voltou!”. Mas bem que o murmúrio coletivo também pode ter sido de perplexidade.
Sim, porque ela estava ainda mais bonita e provocante do que no dia anterior.
O espantoso é que as
surpresas não pararam por aí. Afinal, ela era mesmo incrível! Surpreendia-os a
todo instante. Primeiro foi quando alguém se queixou do preço exorbitante da
cerveja. Para espanto coletivo, ela fez uma preleção sobre o tema, citando a
teoria do equilíbrio correlacionado de Aumann em justaposição ao entendimento
das finanças comportamentais, consoante a ciência cognitiva.
– Explicar o comportamento
aparentemente irracional da gestão corporativa de preços pelos seres humanos,
estabelecendo uma base cognitiva, pressupõe o uso da heurística em consonância
com a "prospect theory". Vocês sabem... – complementou diante da
plateia boquiaberta – Prefiro o Aumann. Como teórico ele é mais flexível que o
John Nash.
O Arnoldo, intelectual da
turma, até tentou acompanhar a conversa, mas, constrangido, confessou que
desconhecia aquele autor.
– Poxa – diz ela com uma voz
doce, aparentando surpresa – mas ele ganhou um Nobel de economia! – Foi como se
ela lhe tivesse aplicado um direto no queixo.
– Ahhh, você está falando
“daquele” Aumann... Por que não disse logo? – ainda tentou consertar, mas
ninguém mais prestava atenção ao que ele dizia. Era como um boxeador agarrado
às cordas ou, ainda pior, beijando a lona. Só faltou a contagem! Todos os olhares
estavam voltados para ela. Olhares de admiração.
Já na semana seguinte o
desconforto se deu com o Jonja. Resolveram apostar um vira-vira de chope com
Steinhegger. Na verdade era para ser mais uma brincadeira sem maiores
consequências, já que todos ali sabem que o Jonja é imbatível no vira-vira.
Pelo menos era, até então. Depois de ser derrotado por ela três vezes seguidas,
o ex-campeão saiu trocando os pés, indignado, pedindo impugnação da disputa.
“Ela é profissional!” ainda tentou alertar aos gritos, mas ninguém prestou
atenção. Afinal, ela era mesmo perfeita! “Se melhorar estraga!”, diziam
fascinados, observando-a lançar bolachas de chope da borda da mesa para o ar,
agarrando-as em seguida num movimento rápido. Primeiro com uma, depois com
duas, em seguida com três...
Dia após dia descobriam que
suas virtudes não tinham fim. Jogava truco como ninguém, sabia contar as pedras
do dominó melhor que eles, tinha um repertório inesgotável de piadas chulas e
ainda entendia de vinho, futebol e cerveja! Um espanto! Até pegaram-na roubando
no palitinho! Era mesmo perfeita! Era bonito de ver... Literalmente falando!
– Os cubanos são mais
encorpados e vigorosos que os dominicanos! – afirmou dia desses, gerando um
silêncio imediato de ciúme no ar...
– Calma, meninos, tô falando
dos charutos! – tranquilizou-os em seguida. Todos riram aliviados. De qualquer
forma, não tinha mesmo como ficar de mal com ela; afinal, não havia zanga que
resistisse àquela cruzada de pernas! Era o paraíso... ou quase! Olhando mais
atentamente, podia-se notar algo de diferente no boteco do Tonho. Difícil de
explicar, mas definitivamente a turma reunida já não era mais a mesma coisa.
O Arnoldo já não arriscava mais seus
comentários, com receio de ser corrigido em público pela beldade. O Jonja,
boêmio inveterado, já nem bebia mais para não ficar inconveniente, e o Tigrão,
o Dom Juan da turma, pasmem, parecia intimidado diante de tamanha beleza.
Até
os happy hours que aconteciam há anos estavam agora ameaçados, já que alguns
deles, manifestando uma vaidade súbita, ultimamente preferiam passar em casa
antes de ir para o boteco, a fim de retocar o visual. Por isso, quando
combinaram aquela assembleia extraordinária no meio da tarde para tratar do
assunto, ninguém faltou, estavam todos lá! Só ela que não, afinal, não fora
mesmo convidada.
Como não houvesse ninguém
que defendesse a pobre garota, a reunião não durou mais que quinze minutos, o
suficiente para deliberarem pela expulsão da moça. A partir daquele dia,
estaria terminantemente proibida de frequentar o boteco do Tonho. Mesmo
tratando-se de uma reunião secreta, decidiram lavrar uma ata, para que ninguém
dissesse depois, num acesso de remorso, não ter concordado com os termos ali
expostos.
E assim, selando seu destino
naquela turma, como exposição de motivos justificando seu banimento, um único
argumento fora levantado contra ela.
Porém, de uma lógica tão inquestionável
que ninguém ousou refutar: “Ela era boa demais!” De fato, ser perfeita era seu
maior defeito. Um defeito com o qual não conseguiam conviver.
Jean Marcel-
Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois
adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas,
romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com
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