"Paulo Freire: um testemunho pessoal".
Artigo publicado na Revista Trimestral de Debate da FASE. Revista PROPOSTA Nº 113, p. 22
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Por Moacir Gadotti
Tenho muitas boas lembranças dele.
Sobre esse livro, fiz meu trabalho final de Licenciatura em Pedagogia, em São Paulo, concluída no mesmo ano da publicação do livro. A partir de 1974, comecei a trabalhar estreitamente com ele, em Genebra (Suíça). Primeiramente, foram as trocas de idéias sobre a situação brasileira, dez anos depois do golpe militar de 1964. Engajamo-nos em campanhas para auxiliar refugiados políticos. Foram muitos os encontros na cantina do Conselho Mundial de Igrejas de Genebra onde Paulo Freire trabalhava. Paulo sempre tratava a todos com enorme cortesia e paciência, sempre sonhando com algo, projetando algo, atendendo inúmeros estudantes de vários países, dando entrevistas, lendo e escrevendo, discutindo. Depois de me orientar pedagogicamente por três anos, em 1977, participou da banca de meu doutoramento na Universidade de Genebra. Minha tese foi sobre educação permanente, uma educação ao longo de toda a vida.
Paulo era muito otimista, acreditava nas pessoas e as estimulava, com suas palavras, ao engajamento e à luta por um outro mundo possível. Repetia, muitas vezes, que o mundo é possibilidade, não é fatalidade. A educação não é um tesouro que se perde ao "entregar" a outros. Ao contrário, é um tesouro que aumenta, ao ser repartido. Mais tarde ele diria que só é válido o conhecimento compartilhado.
Em 1977 eu estava em Genebra, planejando voltar ao Brasil. Disse-lhe que havia sido convidado pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Paulo me confidenciou que se pudesse também voltaria, mas tinha receio de sofrer novas perseguições políticas. Voltaria se conseguisse um contrato com uma universidade pública que, segundo ele, lhe daria maior segurança.
Ao retornar ao Brasil, ainda naquele mesmo ano, procurei a Universidade de São Paulo e a Unicamp para falar sobre o assunto. O diretor da Faculdade de Educação da Unicamp, professor Eduardo Chaves, encaminhou a proposta de contratação do professor Paulo Freire, que foi plenamente aceita pelos órgãos internos da faculdade. Mas a tramitação do processo foi retardada pelo reitor da universidade. Alunos e professores da Faculdade de Educação fizeram, então, várias manifestações públicas para exigir a vinda de Paulo Freire. Nesse ínterim, Dom Paulo Evaristo Arns, Grão Chanceler da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, começou as negociações para trazer Freire. Mas as dificuldades não eram apenas de contratação. O governo brasileiro negava a anistia a oito brasileiros. Entre eles, Paulo Freire.
Em 1978, Paulo havia sido convidado para abrir um seminário nacional, no Brasil, mas lhe negaram o passaporte para regressar. Contudo, por uma artimanha muito bem montada pela Comissão Organizadora do evento, Paulo Freire pode fazer, "clandestinamente" (por telefone), a abertura do I Seminário de Educação Brasileira, realizado em setembro daquele ano, em Campinas. Era a primeira vez que os educadores se reuniam livremente, desde o início da ditadura militar (1964), a primeira vez que estavam ouvindo a voz de Paulo Freire. Ela soava misteriosa e subversiva. Paulo falou de sua alegria de se dirigir aos professores brasileiros depois de catorze anos de exílio. Sua fala foi emocionada, afirmando que sua palavra “não poderia ser outra senão uma palavra afetiva, uma palavra de amor, uma palavra de carinho, uma palavra de confiança, de esperança e de saudades também, saudade imensa, grandona, saudades do Brasil, desse Brasil gostoso, desse Brasil de nós todos, desse Brasil cheiroso, distante do qual estamos há 14 anos, mas, distante do qual nunca estivemos também”.
Paulo estava com muitas saudades do Brasil. Queria retornar, mas sem o passaporte era impossível. Aqui dentro, no Brasil, a luta pela anistia ganhava cada vez mais espaço na mídia e o governo militar teve que ceder. No ano seguinte, finalmente, Paulo e sua esposa Elza puderam retornar ao país. Dia 20 de junho de 1979, antes de voltar, Paulo me escrevia: “que vontade danada de dar um pulinho até aí; vontade mais danada ainda de, aproveitando o pulinho, ficar aí. Se o problema de nossos passaportes já tivesse sido resolvido, nossa intenção era ir aí logo que terminasse o Seminário que vou coordenar na Universidade de Michigan no mês de julho. Tudo indica, porém, que visitaremos o Brasil este ano ainda. O nosso advogado está absolutamente convencido de que, durante o mês de julho, ganharemos o mandado de segurança. Se assim acontecer, estaremos aí talvez em setembro, desde que possamos enfrentar as despesas com as passagens”.
Paulo Freire era uma pessoa bondosa, generosa, solidária. Ele queria bem às pessoas, falava bem delas, era sempre ético, positivo e respeitoso para com todos e todas. Todos os títulos dos seus livros são positivos, esperançosos, mesmo quando escritos com indignação. Ele escrevia para as pessoas que amava, por isso, tudo o que escrevia deveria pertencer àqueles para os quais ele o havia feito: os oprimidos. Por isso não se incomodava em ver alguns de seus escritos reproduzidos sem consulta prévia. Testemunhei isso em 1979 quando traduzi o livro Educación y cambio, o qual ele me pediu para prefaciar. Até eu enviar-lhe esse livro, ele não sabia da sua existência. Esse livro havia sido publicado na Argentina por um grupo de educadores populares, reunindo alguns artigos escritos por ele no Chile, porque precisavam desses textos para as suas práticas político-pedagógicas.
Isso ocorreu com várias de suas obras. Educadores populares, educadores comprometidos com a causa da “mudança”, utilizavam seus textos de diversas maneiras. Paulo nunca se incomodava com isso. Foi assim que o nome dele acabou tomando um tamanho maior do que a sua pessoa, e o mito em torno de seu “método” ganhou força no mundo. Como ele escreveu em defesa de uma causa, a causa dos oprimidos, não se incomodava em ver seus escritos “pirateados”. No caso do livro Educación y cambio, não era nenhuma pirataria. Não faz muito tempo encontrei, na Espanha, num encontro de educadores populares, uma edição artesanal, grampeada, da Pedagogia do oprimido, reproduzida por um sindicato de trabalhadores e vendida a um euro.
Paulo Freire confessou, no último grande Congresso Internacional sobre o seu pensamento, realizado em setembro de 1996, em Vitória (Espírito Santo, Brasil), que se considerava, desde sempre, como um “menino conectivo”. Essa característica não era apenas pessoal. Era também epistemológica. Ele conseguia, melhor do que qualquer outro intelectual que conheço, criar laços, interligar as categorias da história, da política, da economia, de classe, gênero, etnia, pobres e não-pobres. Sua pedagogia não é apenas uma pedagogia para os pobres. Ele, como ser conectivo, queria ver também os não-pobres e as classes médias se engajando na transformação do mundo. Toda pedagogia contém uma proposta política, implícita ou explícita. O “Método Paulo Freire” é um excelente exemplo disso: não tem sentido separar o seu método de uma visão de mundo. Sua teoria do conhecimento está ancorada numa antropologia.
Em todos os seus escritos, Freire nos fala das virtudes como exigências ou virtudes necessárias à prática educativa transformadora. Mas também nos deu exemplo dessas virtudes, entre elas, a tolerância e a coerência. Freire não foi coerente por teimosia. Para ele a coerência era uma virtude que tomava a forma da esperança. Praticava sobretudo a virtude do exemplo: dava testemunho do que pensava. Nessa coerência entre teoria e prática eu destacaria o valor da solidariedade.
Outra virtude que conquistou foi a simplicidade. O simples não é o fácil. É difícil ser simples. Ele conseguia estranhar o saber cotidiano sem ser pernóstico, arrogante. Paulo detestava o intelectual arrogante, sobretudo o intelectual arrogante de esquerda. Para ele, o intelectual de direita já era arrogante por natureza, mas o de esquerda o era por deformação.
O legado de luta e de esperança de Paulo Freire não pertence a uma pessoa ou a uma instituição. Pertence a quem precisa dele. Recordo o filme O Carteiro e o poeta no qual o carteiro se apropriou de um poema de Pablo Neruda para seduzir sua namorada. Pablo questionou o carteiro sobre a autoria do poema e o carteiro respondeu: “a poesia é de quem precisa dela; não pertence ao poeta que a escreveu”.
A teoria e a práxis de Paulo Freire cruzaram as fronteiras das disciplinas, das ciências e dos espaços geográficos. Foram para além da América Latina. Ao mesmo tempo em que as suas reflexões foram aprofundando o tema que ele perseguiu por toda a vida – a educação como prática da liberdade – suas abordagens transbordaram-se para outros campos do conhecimento, criando raízes nos mais variados solos, fortalecendo teorias e práticas educacionais, bem como auxiliando reflexões não só de educadores, mas também de médicos, terapeutas, cientistas sociais, filósofos, antropólogos e outros profissionais. O seu pensamento é considerado um exemplo de transdisciplinaridade. Freire conseguiu fazer uma síntese pessoal original entre humanismo e dialética, o que confere um caráter muito atual a seu pensamento.
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Moacir Gadotti (Rodeio-SC, 21 de outubro de 1941) é educador brasileiro.
É professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) desde 1991 e diretor do Instituto Paulo Freire em São Paulo. Gadotti é licenciado em pedagogia e filosofia, mestre em filosofia da educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutor em ciências da educação pela Universidade de Genebra, na Suíça, e livre docente pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Possui várias publicações voltadas para a área de educação entre elas Educação e poder. (Cortez, 1988), Paulo Freire: Uma bibliografia (Cortez, 1996), Pedagogia da Terra (Petrópolis, 2000) e Educar para um Outro Mundo Possível (Publisher Brasil, 2007).
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