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M.C. GARCIA - [Poeta Brasileiro]


M. C. Garcia

M.C. GARCIA nasceu em Natal, RN, em 19 de junho de 1961. Professor, Poeta, Filósofo, Contista, Militar aposentado e Nicles; tem cinco livros publicados (DENDROCLASTA - poesia -, 1988, São Paulo/SP, PARADOXO EUNIVERSAL - poesia - 1997, Natal/RN, e POVAREJO - contos e lendas, 2005, em Natal/RN, BISACO DE PENSADOR MAIS UM RUMA DE IDEIA, literatura de cordel, 2008, em Natal e POVAREJO EM DOBRO, contos em literatura de cordel, 2008, em parceria) e um livro de Crônicas, no prelo, intitulado CRÔNICAS DE UMA CRÔNICA VIDA, publicação em breve...




INDIFERENÇA

PRINCÍPIO de semana e término de um domingo repleto de ócio em que o crepúsculo já fenecera e o relógio do tempo, através de lucina, dizia que já passava das vinte horas.
A noite de verão dava-nos o privilégio de deleitarmos na leve brisa vinda do mar por caminhos e ruas, entrando portão a dentro para acariciar a mim e ao nosso filho que embalávamos na rede, com a porta da sala entreaberta.
Quando num triscar de olhos, vi passar velozmente um indecifrável vulto que, certamente, não era o vento. Algo passara sob o meu nariz e do da mãe do pequerrucho, a qual, muito aflita me perguntou se eu vira o que passara. Sem hesitar, respondi-lhe:
“Foi um gato”.
No meu âmago, fora a intuição que respondera. Fiquei a questionar comigo mesmo a minha resposta.
Yrla, por sua vez, resolveu passar a limpo nossa dúvida e, bem chegou à porta, viu dentro de nossa casa, no alpendre, um homem.
“Meu Deus, um homem!”
Yrla se desesperou.
Fiquei a pensar. Se aquilo era homem, este seria esquisito demais. Apesar de bípede, andava de quatro e muito rente à parede, feito bicho. Até me fez lembrar Manoel Bandeira. Sim, estava indo em direção ao latão de lixo que se encontrava lá atrás, no quintal.
Pois sim, o incrível é que aquele homenzinho conseguira entrar na nossa hospitalidade sem pedir licença, mesmo com os muros altos e os portões fechados a cadeados.
Calei-me a meditar:
“Quem tem fome não pede licença”.
Fiquem sabendo, leitoras, que o tal bicho reduzira tanto que se fizera mínimo em estatura. Ou seja, se eliminara a quase nada só para conseguir transpor o ínfimo espaço entre o portão de ferro e o chão. Passara com facilidade e habilidade de bicho larápio e esfomeado. Quão infinda era a sua fome. Pois se apresentava numa inanição esquelética de mendigo terminal.
Na rede estava, na rede permaneci. Brincava com nosso pequerrucho. E ao mesmo tempo refletia...
“A fome cega”.
Yrla, desesperada e assustada, me chamava com aflição para pegar o homem que, àquelas tantas, já vinha sendo expulso por outro. Este, por sua vez, já se encontrava no latão e se fizera dono do lixo primeiro. Isto é, por insistência também da fome que corroia seu estômago. Adotara o lixo como patrimônio exclusivamente seu e de mais ninguém.
O dono do latão, por lógica e por concepção da própria natureza, era um predador inato que para se alimentar teria que procurar a sua presa. Possuía, portanto, as características próprias de um antropófago na essência de sua espécie. Mas, parece que evoluiu aos extremos, a ponto de rejeitar seu alimento natural para querer, agora, se alimentar dos restos de comida deixados pela dona da casa, no depósito de detritos, à noite.
Não satisfeito com a presença do invasor - o esquelético alienígena - o dono do lixão só teria mesmo é que se defender com unhas e dentes, literalmente. Pois, que, ali era território onde se encontravam seus víveres cotidiano, sua existência.
Sem que o invasor esperasse, outro homem saltou do muro. E, com uma habilidade gatúnica, surpreendeu o visitante desatento de fome e o fez retornar para seu lugar de origem. A rua.
Mais uma vez, o homem é obrigado a encolher-se a nicles, de barriga num oco de vazia. Tendo que passar novamente pelo estreito espaço do portão, só que, agora, triste e decepcionado até a alma, por faltar-lhe o pão.
E eu, na rede, a brincar e a pensar...
“Lixo também é sinônimo de pão”.
O pobre homem, retornando, passa na mesma velocidade do vulto de antes. Só que, desta vez, num grito estridente num desespero de cortar coração de qualquer humano até como o meu e o de Yrla, que ainda se encontrava à porta, a esperar por mim para expulsar o invasor.
Sequer movi um dedo para sair de onde estava, e, ainda na rede, vi o pobre homem passar correndo, quase a chorar. Ia sendo rebocado pelo dono do lixão que também era seu irmão de víveres.
Particularmente, ficara muito contente por não sair de minha rede para pegar aquele coitado de homem. Mas o que me deixou intrigado, apesar do insignificante vulto que vi passar, foi a impressão de ter visto rabos em ambos os homens. Longas caudas.
Isto, foi a única coisa que pude observar de soslaio naqueles pequeninos e estranhos homens.
“Mas quanta indiferença!”
Disse Yrla a se voltar para mim, com um riso que me deixou em dúvida.


O HOMEMORCEGOMEM

NUMA decrépita Biblioteca margeada por várias mangueiras, onde raras vezes aparece alguém para estudar, apesar do espaço agradável para leitura, termina atraindo outra espécie de animal: morcegos. Estes, atraídos pelo doce cheiro dos frutos, competem com um único leitor: Memor. Homem aposentado de meia idade que faz da leitura o seu lazer exclusivo.
Naquela época do ano a velha biblioteca é um lugar que atrai apenas os noctívagos que se abrigam durante o dia. Visto que o espaço fica sempre fechado eles se sentem seguros nas salas escuras.
Ao cair da tarde, Memor gosta de desfrutar a vida lendo bons livros de literatura, de preferência romances modernistas como de Jorge Amado e outros.
Certa vez estando a sós no seu taciturno mundo de deleitura, Memor sentiu um vento frio soprar-lhe a nuca. Um frio que lhe correu toda espinha deixando-o com os nervos a flor da pele e o coração aterrorizado, a palpitar com o súbito. Seus cabelos e pelos dos braços arrepiados eram a denúncia do seu terror. Mas logo à sua frente, descobriu a causa de tudo aquilo.
Era um morcego que num rasante de bicho alado, peitado e danado, fora pousar num caibro, bem à vista de Memor. Lá de cima, ficou a se balançar feito pêndulo de relógio. Como se o quisesse hipnotizar para lhe sugar o precioso líquido purpúreo de humano.
Memor, aterrorizado, observa o animal e antes mesmo que ele decidisse o atacar novamente, toma iniciativa primeiro e vai à caça do pobre indefeso...
De posse do único apetrecho que tinha em mãos, deu a primeira investida atirando o chinelo de couro contra a pequena criatura, que por pouco não o acertou. Porém, o morcego nada pode entender sobre aquele ataque surpresa.
Estava tão inocente quanto o homem. Assim, como este sempre vinha à tarde ler, ele sempre fazia aquele vôo de fim de tarde. Porém, o tempo estava para chover e escurecera mais cedo. Havia se acordado para exercitar o corpo em seguida, iniciar a sua rotina de noctâmbulo. Por isso, a desgraça estava para acontecer.
Mesmo sem nada compreender, de uma coisa ele tinha certeza: tinha que escapar dos violentos ataques do enfurecido homem. E assim voou de canto a canto; voou o mais rápido que pode para não ser morto.
Porém, a fúria do homem aumentava à medida que errava seu ataque. E mais colérico voltava para dar fim ao pobre e indefeso noctívago. Este, vendo uma brecha de sobrevivência no telhado, deu um vôo direto e certeiro para escapar do cerco.
Mas, quando a alguns milésimos de segundos, já atingindo a saída, sente também atingida sua asa esquerda, que cambaleando bate na parede e se estatela no chão feito pacote fofo de nada, já sem forças, sem sentidos, sem vida.
O vitorioso homem, satisfeito por cumprir sua missão, o pegou pela asa ferida, pobre e inútil morcego, ainda quente pelo último fio de vida, o pôs dentro de um vidro com álcool para servir de exposição a centenas de leigos, ignorantes à cena cruel, como troféu de sua vitória medíocre.
Recuperado do susto e satisfeito do embate, o enigmático homem retoma sua leitura. Está a ler um romance realista digno dos tempos Modernos, estilo Jorge Amado, em que a cena se desenvolve com o namorado sendo acariciado pela sua amada. Esta, por trás dele, passa-lhe as mãos em seus cabelos e vai lhe roçando a nuca com seus lábios cálidos de desejos. Nesta hora, leitor e personagem passam a viver uma realidade fictícia na qual o próprio leitor parece se envolver muito mais e por total. Com a cena que ler, faz se sentir tão abstraído pela leitura inebriante e agradável.
Memor se faz, literalmente, personagem em vida em ato em fato. Porque se sente como próprio personagem vivendo as mesmas sensações, as mesmas delícias das carícias.
Completamente absorvido pela leitura e pela realidade que o envolve, sente um suor quente escorrer-lhe no peito e, ao mesmo tempo, a cair sobre a mesa, o livro, o chão, um líquido escarlate.
Está entorpecido pela ficção e pela realidade, procura entender se está a sonhar ou a dormir.
Despertado daquele arrebatamento e torpor, ver com toda clareza dos seus olhos que um dia Deus lhe há de ofuscar um morcego voando satisfeito, com as mandíbulas ainda ensangüentadas; com a língua a saborear daquele doce líquido escarlate de homem.
Era justamente a mulher do morcego que ele acabara de exterminar.
Ensangüentado, com a vista agora a se ofuscar, tem à sua frente mais de um morcego. E ainda de posse da mesma arma da primeira vítima, procura agir mas não consegue.
Consegue, na verdade, se ver reduzindo abruptamente de tamanho. De repente sente-se um rato a rastejar sobre a mesa, a sobejar-lhe o próprio sangue, vai consumindo as páginas daquele desgraçado e maldito livro que lhe custara a vida?
Num salto que dá de sobre a mesa, esperando cair no chão, sente-se levitar como um pássaro feliz e alegre por ter alcançado a liberdade que todo homem sonha um dia ter.
Porém, ele não é pássaro. Não é rato. Não é homem. É a própria figura de HOMEMORCEGOMEM.
Quando deixa a Biblioteca, encontra o mesmo Amor que o envolveu no romance que leu momentos antes. Tudo é muito confuso na sua cabeça.
Mas fica a certeza de que o Amor que sente lhe dá uma sensação de liberdade indescritível e de eterna leveza.
Bom, está em movimento. Porém, não consegue com clareza discernir se voa andando ou se anda voando.

M.C. GARCIA
Todos os Direitos Autorais Reservados ao Autor

Um comentário

CHIICO MIGUEL disse...

daufen bach,
caro amigo,
Visitei hoje seu/nosso blog "os amigos do poeta daufen bach" e vi e li quanta bleza e sabedoria juntas veiculadas através da poesia na internete.
Não sei o que possa dizer-lhe em adjetivos.
Parto para a substância: sua generosidade não tem limites, talvez porque certamente vai ajudada pela inteligência e pela coragem, pela satisfação de servir com amizade.
Estamos bem servidos de poesia no blog dos "amigos de daufen bach". Farei tudo para divulgá-lo.
Abraços do amigo
Francisco Miguel de Moura