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Anjo da guarda [Jean Marcel]

Anjo da guarda



– Olá... Atrapalho? – pergunta-lhe o rapaz, apontando para um banco que estava ao seu lado.

– Ãhn? – estranhou o Jonja, emergindo das profundezas dos seus pensamentos.

– Posso sentar aqui contigo?

– Sentar? Comigo?

– É... ao seu lado!

– Bom, é que... – Bastaram alguns segundos para avaliá-lo de alto a baixo: bata branca, sandálias de couro, olhos bem azuis, cílios cumpridos, cabelo encaracoladinho... – Olha, não me leve a mal, mas... sabe, eu gosto é de mulher!

– Eu sei! – risos divertidos – E como sei...


– Sabe? Como assim? Você me conhece? Quer dizer... Eu te conheço?

– De certa forma, sim.

– Olha, então me desculpa, é que eu não sou bom fisionomista. Eu não estou associando a figura à pessoa... 

– Não, a gente nunca se viu pessoalmente.

– Não? Mas você falou...

– Eu sou seu anjo da guarda! – disse isso num rompante, porém baixinho, como quem divide um segredo.

– Tudo bem! Agora entendi! Você é o meu anjo... – balançando a cabeça ironicamente e tomando mais um gole do chope – Por que não avisou logo? Eu sempre quis conhecer meu anjo!

– ... da Guarda! – completou, oferecendo sua mão num cumprimento – Juro! Você não acredita?

– Você acreditaria?

– Bem... Se eu fosse um mortal e dirigisse como você... Só por estar vivo eu já acreditaria em anjo da guarda.

– Engraçadinho...

– É sim! Aliás, quando a coisa aperta, bem que você me chama! Lembra daquele caminhão vindo na contra-mão, bem na sua direção, na semana passada?

– Ah tá... Era só o que faltava! Vai colocar a culpa em mim? Eu não saí porque eu estava na “minha razão”! Êpa! Como você sabe? Eu estava sozinho no carro.

– Estava nada. Eu estava contigo! Quase larguei de mão! Não te cuida não... Quem tem sete vidas é gato!

O Jonja o fitou ainda desconfiado. Se você é... Então cadê o olhar angelical... Os traços delicados... o “arquinho” dourado na cabeça...?

– Êee... você está me estranhando!?

– Uhm... Sei não... Se você é um anjo... Então o que você está fazendo num boteco? Quero dizer... Acho que aqui não é ambiente pra você!

– Eu sou anjo, não sou santo. E por falar nisso, pára de oferecer sempre um trago pra ele, pro santo, vai acabar levando-o pro mau caminho! – disse isso e entornou de um só gole o resto do copo do Afonso.

– Ah, engraçado! Não sabia que anjo bebia!

– Diga com quem andas e te direi quem és!

– Mas afinal, o que você está fazendo aqui?

– Eu vou aonde você vai! Principalmente à noite, para que não se meta em confusão!

– Não tem dado muito certo, não acha? – abastecendo novamente seu copo

– Você é que pensa... Tenho feito hora-extra direto!

– Ah, tá... Anteontem mesmo conheci altas gatas e depois perdi o papelzinho com o telefone dela! Procurei por tudo... Fiz até promessa! Onde é que você estava? Assim vou te trocar pelo “São Longuinho”!

– Eu que escondi... O torpedo que ela te mandou com o telefone... Dei fim!

– Pirou? De que lado você está? Eu matando cachorro a grito e você joga fora o telefone daquela potranca?

– Ela era encrenca... Doidinha pra engravidar! E depois, eu sou seu anjo da guarda e não cupido!

– Isso explica muita coisa. Eu estar sozinho, por exemplo!

– Devia me agradecer! Se tivesse saído com ela, teriam ido a um luau de uma amiga dela, não é?

– Isso mesmo, ela me convidou para uma festa...

– E sabe o que aconteceria? Teriam tomado um porre e acordado no dia seguinte na praia, ambos nus, abraçados.

– É...? – suspirando, com cara de quem perdeu o ingresso para o jogo final do campeonato.

– Anrã. E o resto você já sabe... déjà vu... Depois, quando elas te ligam para avisar que as regras não vieram, você fica fazendo promessa pra mim. Pensa que é fácil resolver, é? E o pior é que ainda por cima é mal agradecido... Nunca cumpre as promessas!

– Unnnnr. – desconcertado, mas ainda avaliando a oportunidade que perdeu. – Você ainda tem o telefone?

– Joguei fora! – com cara de brabo.

– Ahh – desanimando. – Me diz uma coisa... Você vai a todo o lugar aonde eu vou, é?

– Isso!

– TODO lugar?

– Anrã!

– Por exemplo: quando eu vou ao banheiro...

– Vou!

– Mentira...

– Você nunca puxa a descarga! Sem falar que raramente lava as mãos!

– Ops! – tirando da boca o dedo indicador, cuja cutícula ficava mordiscando num cacoete nervoso. – Lavo sim, ta?

– Onde você vai, eu vou!

– Ah é? Quando eu vou ao motel. Você vai junto?

– Vou! Meu trabalho é na alegria e na tristeza!

– Pô! Cadê minha privacidade? Sábado passado por exemplo... Você estava lá? Quero dizer... Você foi junto... Ao motel?

– Unrum! E te ajudei, não foi?

– Não precisava. Estava tudo sob controle!

– Faz de conta... E as suas preces?

– Olha... Foi a primeira vez! Aquilo nunca aconteceu comigo antes!

– Como não? E aquela outra vez...

– Calúnia! Não lembro!

– Não? Quer que eu te relembre?

– Tá bom! Ok... Nem me fale... Aquela noite, nem se trouxessem um guindaste! Não ia nem com reza brava. Alias, onde você estava? Era sua folga? Se bem me lembro você me deixou na mão!

– Ah é?! Agora a culpa é minha? Que tal selecionar melhor suas companhias... Eu só dou uma força... Eu sou só seu anjo da guarda. Milagre é com o homem lá de cima! Seu time, por exemplo, já vou avisando, não adianta ficar rezando pra mim enquanto não trocar aquele zagueiro!

– Não me diz que vai ser outro ano difícil pro meu time?

– Vai! – concordando com a cabeça – Tá como o diabo gosta! Ops! – bateu três vezes na mesa como se tivesse se arrependido de citar a concorrência – E olha lá... Vê se pára com essa mania de xingar a torcida organizada do time adversário.

– É mesmo! Lembra? A pilha passou a dois dedos da minha testa. Foi por um triz! Se pega... Muita sorte a minha!

– Sorte? Essa é boa! – o anjo entornou mais um chope. – Além de tudo, é mal agradecido...

– Não... não quis ser grosseiro... mas me diga uma coisa... essa sua “profissão”... o cara tem que ser meio voyeur, não acha?

– Justamente! Por isso estou aqui. Cansei de só observar e consertar seus erros! Decidi fazer uma abordagem mais direta! Sei lá... Te dar um toque! Você está jogando sua vida fora! Queria te despertar para o bem... Uma pessoa bem intencionada pode mudar o mundo!

– Uhm... É? – murmurou o Jonja, que embora não dissesse nada, prestava uma atenção danada.

– É sim, lembra aquele outro dia...

E assim, conversaram por horas, dividindo o chope e as lembranças. Se de alguma forma já eram íntimos, agora viraram confidentes. A conversa fluiu como se fossem velhos amigos. E eram mesmo. Tanto que o Jonja nem viu a noite passar, só percebendo o avançado da hora quando o Bigode, garçom da casa, pediu licença para passar o rodo sob os seus pés. Esse era o código para que os clientes remanescentes pedissem a saideira. E foi nessa fração de segundos que, sem que ele percebesse, sua companhia se foi, como num passe de mágica. Não sabe se passou pela porta ou se saiu voando numa nuvenzinha! Pelo menos foi isso que contou aos poucos amigos que restavam no boteco e que, para sua indignação, insistiam em dizer que ele, de tão bêbado que estava, passou a noite falando sozinho.

O Jonja foi embora desse jeito, resmungando do valor da conta e trocando as pernas, consequência dos mais de vinte chopes consumidos, dos quais, porém, alega ter tomado só a metade. Antes de sair, ele até tentou, sem sucesso, argumentar com o Tonho, mas não houve jeito e teve de pagar a conta inteira. A única nota positiva é que, ao menos naquela noite, o Jonja dirigiu até sua casa com um cuidado incomum. Afinal, da última vez que o viu, seu anjo da guarda, estava seguramente muito pior do que ele. “Muito bonzinho, mas fraquinho pra bebida”, avaliou do fundo de sua bebedeira. Mas apesar de tudo, esse encontro mudou sua vida. Agora, por exemplo, sempre que vai ao banheiro, jamais se esquece de puxar a descarga. Já é um começo...


Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com


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