Cachaça
Meu avô gostava de fumar sentado nos
degraus da varanda. Pouco dizia. Nossa língua era complicada demais para
o italiano enraizado dentro dele. Riscava o fósforo e sumia bem ali na
nossa frente. Às vezes, minha avó gritava e ele abria os olhos para
confirmar se continuávamos lá. Éramos apenas nenas. Um reino de
maria-chiquinhas, congas nos pés, saias prensadas.
Naquela época, meu pai
trabalhava no correio e minha mãe ensinava datilografia para as moças
ricas do Klabin. Ficávamos ali, boneca de pano, jardim, peteca, carrinho
e a suspeita que meu avô não sabia direito quem era quem entre nós.
Minhas irmãs não se importavam, tinham nojo quando o velho pigarreava e
cuspia no chão do quintal. Eu não conseguia tirar os olhos daquele
cuspe, vontade de passar a roda do carrinho por cima.
O velho vendia cachaça. Vinha
freguês até de Interlagos conhecer sua pinga com pitanga. Paravam a
Kombi lá fora e o barulho dos passos e os vidros esverdeados no
engradado. Meu avô cobrava caro e quando não queriam pagar o preço
certo, expulsava todo mundo, palavrão ladeira abaixo. Depois que iam
embora, minha avó desabava: Và fan´culo, Valentim, và fan´culo. Ele
retrucava calado e se trancava no barracão. Não era dinheiro a razão do
meu avô.
O barracão era todo de madeira.
Lá dentro, dezenas de barris de diversos tamanhos e aromas. Eu lembro do
cheiro forte e da luz sempre suspensa. Era álcool misturado à madeira
úmida e à ferrugem das ferramentas em seqüência. De tudo o que me foi
proibido até agora, nada se compara ao cheiro daquele lugar.
Talvez não fosse uma proibição
verdadeira. A porta sempre esteve aberta e lá dentro, ele fingia não me
ver cantando entre os barris. Meus dedos ficavam pretos de pó e eu
tentava decifrar as letras pintadas num vermelho vivo. De costas para
mim, meu avô escrevia em silêncio. O corpo encurvado no banquinho e
depois de pé, rabiscando uma coluna de números na lousa verde. Minhas
irmãs brincavam lá fora. Minha avó cozinhava alguma coisa. Eu e meu avô,
sem saber, estávamos presos naquele aroma.
Então, numa daquelas tardes,
quando eu saia do barracão, ele largou o giz e se virou imenso. Os olhos
dele eram de uma transparência assustadora. Meu avô perguntou quantos
anos eu tinha. Eu respondi e peguei as suas mãos estendidas. Entramos no
corredor e ele despejou num copinho um dedo de pinga para mim.
Senti o odor que evaporava do
copo e de repente, era aquele o cheiro que vinha dele. Quando o líquido
amoleceu a minha língua, meus olhos se encheram d´água e eram as coisas
todas de uma quentura amarga. Meu avô, numa felicidade estranha, deu um
tapa de homem para homem nos meus ombros. Depois, arregalou as
sobrancelhas e bebeu a sua dose num só gole.
Nós sorrimos cúmplices.
E, finalmente, ele perguntou o meu nome.
Tatiana Carlotti - Balzaquiana convicta e amante das letras.
Pulsa no Centro de São Paulo ao lado do Balzac, seu gato. Criou dois blogs: O2L
e SobremargenS.
Todos os direitos autorais reservados a autora.
5 comentários
Lindo Post !!!
Também nasci de uma família de imigrantes, e essas lembranças são tão reais que parecem minhas...
Adorei !!!
Bjs
Nádia
Lindo Post !!!
Também nasci de uma família de imigrantes, e essas lembranças são tão reais que parecem minhas...
Adorei !!!
Bjs
Nádia
Postei no Facebook... O seu texto é muito lindo, chega dá água nos olhos, de tão tocante...
Gostaria de postá-lo no meu blog... Você pode me enviar para poeta.baiano@gmail.com ???
Super obrigada Nádia! Poeta, eu que agradeço por divulgar o texto. Já estou enviando.
Abs!
Tatiana
A cachaça é uma bebida popular de grande aceitação. Falar sobre ela tem pano pras mangas, lembrando o avô então, com seu tragos diários, deu um belo conto.
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