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Poesia: Erotismo, Pornografia e outras Sacanagens[Raul Arruda Filho]



Poesia: Erotismo, Pornografia e outras Sacanagens

Erotismo, pornografia e sacanagem. Palavras diferentes para expressar o que deveria ser igual – mas, por diversos motivos, não o é. Falar e escrever sobre sexo tornou−se um sentido perdido na comunicação humana. O moralismo pequeno−burguês que nos cerca estabeleceu um código de comportamento para atos públicos e ações privadas.

Sexo, definitivamente, é um assunto privado. Privado de liberdade. Entre quatro paredes vale tudo − costuma−se anunciar quando se quer dizer que a expressão do desejo é luta, é forma de transgressão. Não me importo com o que as pessoas façam – desde que não façam na rua e não assustem os cavalos, disse, no século XIX, a atriz Pat Campbell, a lembrar que, no teatro da vida, existem tapumes a separar o palco e os bastidores, o comportamento íntimo e a civilização. Algo assim: tesão tem hora! Se tiver vontade no meio da manhã, segure a barra! Segure o que tiver vontade de segurar − e se perder a vontade de segurar, solte. Só não solte a franga, porque é preciso se controlar, mostrar atitudes de cavalheiros e damas da corte inglesa. Mostre ao que nos levaram dois mil anos de educação: repressão, contenção, negação, interdição.


 
Sexo, definitivamente, exige cuidados. Além da possibilidade de gerar filhos, fantasmas como gonorréia, sífilis e Síndrome da Imuno−Deficiência Adquirida estão, em todos os lugares, a nos avisar que não devemos sair por aí, fudendo adoidado. Outra coisa: expressões como "fudendo adoidado" também não são recomendadas. O politicamente correto fudeu com toda a espontaneidade. É preciso parar e pensar antes de dizer o que é preciso dizer. Ou melhor, antes de qualquer coisa, é preciso passar na farmácia e comprar o kit básico contra o medo: preservativo, KY, Viagra (ou Cialis ou Levitra ou o que for recomendado pelo seu, meu, nosso médico). Sem esses acessórios não dá, como avisa o Ministério da Saúde. Sem esses cuidados não é possível deslizar embaixo das cobertas, a cobrir o que precisa de cobertura, a conjugar, na ponta da língua, os verbos mais saborosos: olhar, desejar, beijar, despir, chupar, comer, dar, introduzir, receber, abrir, fechar, meter, tirar, gozar. Sem os mais elementares desassossegos não será possível ultrapassar a barreira da inocência: eu mostro, se você mostrar também. Não será possível encenar cena clássica, aquela que o inconsciente (literário, cinematográfico) vive a repetir: depois do esforço físico, uma das partes encontra energia para acender o cigarro e perguntar: "Foi bom para você?"


Sexo, definitivamente, está envolto em preconceito. Parte da canalhice está em considerar que a pornografia é apenas uma diversão masculina e que o erotismo é uma forma elevada de deleite estético feminino. Alguns teóricos, para ampliar essa discriminação, argumentam que os textos que descrevem mil e uma travessuras sexuais não estão preocupados com a técnica narrativa ou com qualquer tipo de pesquisa de linguagem, constituindo elaborada produção discursiva para incrementar o fluxo sangüíneo de uma parte específica da anatomia masculina. Ou seja, a pornografia é apenas uma forma de incentivar a masturbação dos homens sem−vergonha, doentes, tarados. Bobagem. Confundem a procura pelo prazer com o proibido. Ou melhor, como o medo de tornar público aquilo que consideram o proibido. Inclusive porque a sexualidade não é território inacessível ao feminino. Homens e mulheres gostam de sexo, de sacanagem − essa é uma das maneiras com que a união do masculino e do feminino se conjuga. E isso é o que é necessário saber. 
 
Sexo, definitivamente, não é amor. E, claro, amor não é sexo. Só porque um casal (ou todos os participantes dessa suruba mental que envolvem todos os participantes das brincadeiras em cima de uma cama) resolve praticar uma troca de fluídos corporais isso não significa que vão ser felizes até que a morte os separe. A grande invenção da modernidade, o "ficar", que muitas vezes leva ao "fincar", é um das poucas mudanças de comportamento sexual na direção do prazer. Se não foi bom, adeus; se quer continuar, que engate a rola nesse rolo. Tentativa e acerto. Sem compromisso. Sem essa de enganação: princesas e príncipes encantados são truques de conto de fadas, o bom mesmo é o canto das fodas, entre ais e uis e a vontade de quero mais. Vai dizer que nunca sentiu a alma a fugir do corpo? Vai dizer que nunca revirou os olhos, enquanto o sol e a lua explodiam em beleza e calor? Vai dizer que nunca "voou sem asas", como aquele personagem do Boccaccio?


Se eu acho que o sexo é sacanagem? Só quando é bem feito, disse Woody Allen, introduzindo o humor no orifício em que a vontade de ser feliz se abre em flor, êxtase e delícia, comprovação de que trepar é bom, bombom, o licor a escorrer pelos dedos, a mão naquilo e aquilo na mão, passeios na contra−mão do bom comportamento, fruição do gozo gozado para quem está na linha de batalha entre lençóis de linho egípcio ou diante de filmes pornográficos de terceira classe − em alguns casos, sem classe. 




Luisa Coelha, no prefácio do livro de contos que organizou, Intimidades, não economiza explicações: O discurso pornográfico é aquele que torna o ato sexual transparente, revelando aquilo que à sexualidade do dia−a−dia é invisível, numa estética hiper−realista, onde as cenas descritas são mais reais que o próprio real (acumulando uma grande quantidade de sinais que acabam por afastar a realidade) e em que o sexo surge sem relação com o sujeito, sem intimidade e sem alteridade

 
Pois é. O que Luisa quer dizer é que sem o outro não há gozo. Sem parceria não é possível boa saúde mental. A imagem é apenas imagem, nunca a vontade de ultrapassar a projeção. Em outras palavras, o texto pornográfico é uma forma de espiar pelo buraco da fechadura, uma forma de invadir a vida do Outro. Uma forma transversa, travessa, de sentir o que gostaríamos de sentir e que não é possível sem o uso de alguma forma de intermediação. No fundo, bem no fundo, apenas um recurso de quem sente prazer em gozar com a ajuda do pau do outro, dos outros.

A pornografia não é o tipo de literatura que devemos recomendar às boas famílias, aquelas que acreditam que a cegonha deposita os bebês embaixo dos pés de couve. Todo tipo de narrativa rotulada como pornográfica, obscena, licenciosa, fescenina e erótica está proibida de freqüentar as "altas literaturas". São textos "sujos", que devem ser excluídos do convívio social. Com as famosas exceções de sempre (Marquês de Sade, George Bataille, Henry Miller, além de mais uns dois ou três pornógrafos eméritos), a tendência geral é a de considerar como secundária toda literatura que evoca fantasias não−verbais de caráter sexual. 
A literatura brasileira, encharcada pela água e o vinho do catolicismo, também prima pela adoção desse sistema de valores. E isso muitas vezes resulta em grandes contradições, em equívocos lamentáveis e em gargalhadas saborosas. Como a modernidade eliminou as "marchas por deus, pela pátria e pela família", onde eram exorcizados os demônios mais perigosos, mais tentadores, precisou−se de novos inimigos. Um deles é a moralidade comportamental. A pornografia se transformou em metáfora do final dos tempos, de dissolução da família, de degradação social. Esqueceram de combinar com o mundo que as imagens que ilustravam os "catecismos" do Carlos Zéfiro agora estão expostas na internet, literalmente ao alcance da mão de todo tarado virtual.

O discurso pornográfico está em posição oposta ao discurso erótico: "uma representação verbal mais completa de Eros, com todos os seus componentes, e não apenas como uma exploração grosseira e gratuita da libido". Hã? Luisa Coelho, ao apresentar as duas definições, quer nos dizer que existe um hiato entre "esses livros que se lêem com uma só mão", como definiu Jean−Marie Goulemot, e a excitação contida (nos dois sentidos) nos textos mais sensíveis à estética e ao bom comportamento. Non−sense. Sacanagem é sacanagem e todos (homens, mulheres, homossexuais e abstêmios) cultivam essa quebra do comportamento moral burguês. A discussão não é entre pornografia, erotismo e sacanagem – é entre hipocrisia e coragem de assumir que o discurso sexual atravessa nossas vidas com intensidade e obsessão.

Nos anos 80, a editora Brasiliense publicava uma revistinha institucional: "Primeiro Toque". Em um dos números, uma definição que merece atenção: erótico é tudo o que excita; pornográfico é tudo o que assusta. Entre o que assusta e o que excita corre um filete (provavelmente, um estilete) muito tênue, que torna difícil de separar isto e aquilo – a vida é assim mesmo, um pouco estranha, muitas vezes contraditória, sempre confusa, agradavelmente complicada.
Adeus recato, bom comportamento é desacato às leis do desejo. Toda trepada vale a pena se o desejo não for pequeno, digo, se o desejo for grande, que pequeno é adjetivo proibido no universo fescenino. Homens odeiam qualquer menção aos tamanhos mínimos, mulheres sonham com brinquedos imensos. Homens e mulheres ambicionam orgasmos capazes de fazer a Terra sair da órbita. Tamanho é documento. Ou afrodisíaco. Talvez essa seja uma das explicações para que o discurso sexual encontre morada no caudal interminável que á prosa. No prefácio de Delta de Vênus, Anaïs Nin conta que foi contratada para escrever várias histórias eróticas. Um dia, recebeu um telefonema. Ouviu uma voz a lhe dizer, a respeito do trabalho já entregue: Está ótimo. Mas deixe de fora a poesia e as descrições de qualquer coisa além do sexo. Concentre−se no sexo. Deixe de fora a poesia, disse a voz, unificando a expressão do desejo com o habitat da excitação – impasse em que está expresso o que ele queria ler e ela não queria escrever.

Historicamente, muitos leitores ignoram (ou fazem questão de ignorar) a carga hormonal que está impregnada no corpo poético. Nos primórdios da história literária somente a poesia tinha lugar na transmissão do conhecimento. Livros fundamentais como a Odisséia e a Iliada foram escritos em versos – embora a modernidade os estupre em prosa.

De qualquer maneira, a poesia é o sal da terra, o cio da fera, momento que não tolera espera, urgências da carne, frêmitos da paixão, fruta pronta para ser desfrutada por quem não tem medo de saborear o sumo. Por quem não tem medo que a libido suma − visto que é soma e não subtração. A poesia é a fala expressa pelo verso, mistura do phalo com falácias, falésias, falências e felácios, momento em que o abismo se confunde nas palavras e carícias, sussurros no ouvido, arrepios olvidados pelas promessas de que o gozo se completará. A cada verso, conversa; a cada estrofe, a surpresa limítrofe; a cada poema, teorema.

Quando Platão expulsou a poesia do mundo intelectual não o fez porque não a compreendia ou por ser pudico. O fez por entender o caráter subversivo das palavras, por combater o poder de sedução de um discurso que muitas vezes despreza a racionalidade. Isto é, no jogo da vida muitos gostam de enganar o coração, fingem escolher a razão para fugir da emoção. Pura enrolação. E é por isso que muita gente adora rimar amor, flor e dor. Em lugar de descrever que os homens vivem com a flecha pronta para disparar e as mulheres com a aljava úmida, muito poeta prefere canalizar suas energias na brochada, no amor inalcançável, na interdição do desejo. Nesse deserto de idéias nada salva, nem mesmo amendoim, catuaba, ostra ou ovos de codorna.

A boa poesia é aquela que arrebenta com as comportas, arregaça as portas fechadas pela mediocridade, desliza pelo imaginário como se fosse lubrificada pela obscenidade que é a vida.

Dito tudo isso, que de certa forma não significa nada, cabe lembrar que a pornografia, o erotismo, as sacanagens e a poesia são formas de aproximar o imaginário do concreto – sem esquecer, como se dizia antigamente, que com cuspe e paciência tudo se ajeita.
 

(TEXTO ESCRITO ESPECIALMENTE PARA FACVEST E APRESENTADO EM 10/10/2011)

Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 
Todos os direitos autorais reservados ao autor.

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