A cidade que sobreviveu ao fim do mundo
As moscas pousavam delicadamente no morto. Parecia até que estavam a respeitar o seu estado. Eram as únicas a demonstrar tal sentimento. Jazia o morto numa mesa velha de madeira num bar insolente e vazio. Morrera de véspera, esperando os fins do tempo.
Dois dias antes as ruas da cidade estavam cobertas por uma densa camada de lama, pois a chuva durou sete dias e reduziu a terra vermelha a barro mole.
(Começou a chover às dez e meia na manhã da quinta-feira da penúltima semana do mundo. E só parou às quatros da tarde da quarta-feira da semana seguinte. O mundo acabaria na sexta-feira. )
Quando acabou a chuva, o morto, então vivo, estava revezando a bebedeira com caminhadas longas entre os bares da rua cinco. E tentava a todo custo arrumar uma prostituta para si, para acabar a vida numa cama barata do único hotel da cidade. Tinha muito dinheiro no seu bolso. Tinha muita vontade nas suas pernas. E não tinha nada no seu coração.
Já eram quatro anos sem notícias de Catarina. A moça, sem coração, fugiu com o anel de noivado cinco dias antes do casamento, sem nenhuma mísera pista de onde poderia estar. Catarina o transformou no pior que poderia ser, apareceu o hábito de beber e logo o hábito de bater nas prostitutas que pagava para saciar suas necessidades humanas. Batia sem dó. Mas depois, num ato de misericórdia, que durava menos que um minuto, as abraçavam e sussurrava qualquer mazela de amor no delírio da lembrança de Catarina. Voltava para casa chorando.
Na noite da quinta-feira prometida, com as ruas apinhadas de gente e pavor, bebeu sem culpa os últimos centavos que tinha no bolso. Quando já estava tresloucado no meio da multidão, vislumbrou longos cachos negros de uma moça que passou não muito longe de si. Era ela. Sentiu na boca o gosto amargo do seu próprio sangue e encostou o corpo na entrada do bar da puta Olímpia.
A moça andava calmamente, sorrindo para as caras surpresas que encontrava no caminho. Vez ou outra parava e tentava dançar, rodava a saia e chacoalhava o cabelo. Até que, num dos rodopios, parou de frente ao bar da puta Olímpia e fez o passado todo retornar aos seus pés.
(O céu estava negro e a qualquer momento poderia chover outra vez.)
O morto, seguro de si, caminhou até a moça e perguntou seu nome. Era Betânia. Um pouco mais nova que Catarina, mais bonita e menos passional. Perguntou quanto era. A moça se ofendeu, era nada não.
Então, levou ela para cama barata do único hotel da cidade. E antes de ser feliz até o fim dos tempos, sentiu pela segunda vez o gosto amargo do próprio sangue e morreu com um tiro da arma engatilhada que carregava enroscada no cinto. Estirado no chão a dois passos da cama.
A moça, forasteira, avisou a puta Olímpia. Carregaram o corpo até o bar. Amanheceu o último dia e nada aconteceu até a manhã do dia seguinte. O morto foi jogado numa vala de indigente, a moça precisou ficar e nunca mais choveu.
Rosana, a puta que substituiu Olímpia muitos anos depois, conta que, não morresse o morto, a cidade não sobreviveria para ver o resto do mundo acabar.
Cinthia Andressa de Lima. Nasci em maio de 1988. Sou mãe de Malu, a menina mais esperta do condado. Acumulo livros, escritos, desenhos nas paredes e quadros inacabados num pequeno apartamento cheio de amor em Cuiabá. Estudante de Literatura na faculdade de Letras da UFMT, com publicação no livro “Da Ilha dos Livres” da Sociedade dos Jovens Escritores da UFMT. Também atendo no Casa 11: blog quase falido, mas muito estimado (http://www.acasa11.blogspot.com.br/) . Um dia fugirei para Jericoacoara.
Contato: cinandressa@gmail.com
Assinar:
Postar comentários
(
Atom
)
Nenhum comentário
Postar um comentário