Considerações sobre a chuva
A
moça do rádio acabou de avisar que amanhã fará frio. Nem precisava, o céu está
denso, cheio d’água, há horas… Outro dia me disseram que melancolia é saudade
de algo que não vivemos e que, muito provavelmente, não vamos viver. A chuva
suspensa sobre São Paulo, por exemplo.
De
qualquer forma, venta.
Venta
uma Sibéria inteira.
Foi o
que pensei ao descer do táxi na Paulista, três quadras antes de casa:
“Desde quando o sr. dirige táxi?”
“Ah, desde que eu fugi de Santos…”
Seu
Fabiano foi jurado de morte por um marido fulo da vida.
“Sempre fui feio e pobre, boneca, mas nunca
me faltou mulher”. Não, ele disse “mulheeerrrr”.
Estereótipo pronto: corrente grossa de ouro, perfume barato e uma camisa
florida que acabei de botar no Seu Fabiano.
Ele
era cortador de frios num supermercado. O cara chegou com um revolver nas mãos
e Seu Fabiano em disparada com um facão pelos fundos. Subiu a serra com tudo.
Há formas e formas de começarmos uma profissão…
Assim
desci a Brigadeiro, rindo do taxista cortador de carnes, quando avistei do
outro lado da rua um cara que vive bêbado por estas bandas. É ele quem canta,
vez ou outra, de madrugada na Ribeirão Preto. O repertório é bom, não falta
Robertão, 16 rotações às 3 da matina. Mas, dessa vez, ele saudava alguém do
outro lado da esquina.
Um
bando de gente amontoada para atravessar no farol. Soldados exaustos de uma
batalha sem causa. E aquela reverência medieval, corpo encurvado e o balangar
dos braços de ponta a ponta. Quem precisa de cornetas se há tanta buzina?
Atravessei
a rua, princesa que nunca fui.
Rainha que jamais serei.
E
isso já estaria de bom tamanho dada a chuva feita para cair, mas que por
maldade, burrice ou pura covardia, recusava a escorrer sua natureza líquida. A
única, aliás, capaz de matar essa sede que aperta minha garganta quando trago
um cigarro.
De
qualquer forma, venta.
Venta
uma Sibéria inteira.
Quando
eu já estava a uma quadra de casa, próxima de esquecer mais esse dia, um poodle
de sapatos surgiu na minha frente. Quatro sapatinhos vermelhos saídos, no
mínimo, de um desenho animado. Ah, tac-tac-tac e de repente, eu estava na beira
de um lago...
De repente, a água corria. De repente, as pessoas se molhavam. De repente, o
vento era quente e São Paulo explodia numa espécie de alegria
úmida. A chuva…
Mas o rabinho do
poodle prá lá e prá cá... O rabinho do poodle ventilava as fissuras do casaco.
Rachadura nos lábios. Nariz gelado. Nuca descoberta. O rabinho do poodle era de
uma violência...
Fechei
a porta.
A
moça da TV acabou de avisar que amanhã irá chover. Duvido. O céu continua
denso, quase sólido, absurdo. Outro dia me disseram que angustia não é pressa,
mas arrependimento de não ter vivido, nem dito ou feito o que se podia no tempo
certo. A chuva que não caiu, por exemplo.
Tatiana
Carlotti. Balzaquiana convicta e amante das letras. Existe neste contínuo espaço/tempo, sem muita pretensão de eternidade.
No momento pulsa, quatro andares acima do solo, no centro de São Paulo. “Venta, eu gosto”. Ainda sonha...
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