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Considerações sobre a chuva [Tatiana Carlotti]



Considerações sobre a chuva
A moça do rádio acabou de avisar que amanhã fará frio. Nem precisava, o céu está denso, cheio d’água, há horas… Outro dia me disseram que melancolia é saudade de algo que não vivemos e que, muito provavelmente, não vamos viver. A chuva suspensa sobre São Paulo, por exemplo.
De qualquer forma, venta.
Venta uma Sibéria inteira.
Foi o que pensei ao descer do táxi na Paulista, três quadras antes de casa:

“Desde quando o sr. dirige táxi?”
“Ah, desde que eu fugi de Santos…”

Seu Fabiano foi jurado de morte por um marido fulo da vida.“Sempre fui feio e pobre, boneca, mas nunca me faltou mulher”. Não, ele disse “mulheeerrrr”. Estereótipo pronto: corrente grossa de ouro, perfume barato e uma camisa florida que acabei de botar no Seu Fabiano.
Ele era cortador de frios num supermercado. O cara chegou com um revolver nas mãos e Seu Fabiano em disparada com um facão pelos fundos. Subiu a serra com tudo. Há formas e formas de começarmos uma profissão…
Assim desci a Brigadeiro, rindo do taxista cortador de carnes, quando avistei do outro lado da rua um cara que vive bêbado por estas bandas. É ele quem canta, vez ou outra, de madrugada na Ribeirão Preto. O repertório é bom, não falta Robertão, 16 rotações às 3 da matina. Mas, dessa vez, ele saudava alguém do outro lado da esquina.
Um bando de gente amontoada para atravessar no farol. Soldados exaustos de uma batalha sem causa. E aquela reverência medieval, corpo encurvado e o balangar dos braços de ponta a ponta. Quem precisa de cornetas se há tanta buzina?
Atravessei a rua, princesa que nunca fui.
Rainha que jamais serei.
E isso já estaria de bom tamanho dada a chuva feita para cair, mas que por maldade, burrice ou pura covardia, recusava a escorrer sua natureza líquida. A única, aliás, capaz de matar essa sede que aperta minha garganta quando trago um cigarro.
De qualquer forma, venta.
Venta uma Sibéria inteira.
Quando eu já estava a uma quadra de casa, próxima de esquecer mais esse dia, um poodle de sapatos surgiu na minha frente. Quatro sapatinhos vermelhos saídos, no mínimo, de um desenho animado. Ah, tac-tac-tac e de repente, eu estava na beira de um lago...

De repente, a água corria. De repente, as pessoas se molhavam. De repente, o vento era quente  e  São Paulo explodia numa espécie de alegria úmida. A chuva…


 Mas o rabinho do poodle prá lá e prá cá... O rabinho do poodle ventilava as fissuras do casaco. Rachadura nos lábios. Nariz gelado. Nuca descoberta. O rabinho do poodle era de uma violência...
Fechei a porta.
A moça da TV acabou de avisar que amanhã irá chover. Duvido. O céu continua denso, quase sólido, absurdo. Outro dia me disseram que angustia não é pressa, mas arrependimento de não ter vivido, nem dito ou feito o que se podia no tempo certo. A chuva que não caiu, por exemplo.


Tatiana Carlotti. Balzaquiana convicta e amante das letras. Existe neste contínuo espaço/tempo, sem muita pretensão de eternidade. No momento pulsa, quatro andares acima do solo, no centro de São Paulo. “Venta, eu gosto”. Ainda sonha...  Site: SobremargenS.

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