Ninguém vai te salvar
Como se os músculos que sustentam meu rosto tivessem se rompido e só a pele segurasse minha cara frouxa, era assim que eu me sentia. Essa sensação poderia ser confundida com o resultado de uma profunda meditação relaxante, mas era só desencanto mesmo. Pela centésima vez aquela noite, constatei que a caixa de mensagens do gmail continuava vazia de qualquer esperança. Deitei de lado no sofá, tão mole quanto minha cara sem músculos e liguei a TV no “Celebrity Rehab”. Não por acaso: eu costumo assistir ao doutor Drew ajudando celebridades questionáveis a se desintoxicar de todo tipo de tranqueira. No episódio daquela noite, alguns participantes da temporada anterior voltaram à clínica para conversar com os internos atuais no esquema se-eu-estou-conseguindo-me-manter-limpo-você-também-consegue. E foi aí, nessa hora besta de veias rotas e fossas nasais destruídas, que, por fim, assimilei o fato: ninguém vai me salvar.
Saber que ninguém vai me salvar eu sabia faz tempo, mas a idéia não era concreta como esse controle remoto ainda imantando a minha mão. Qual é: estamos eu, você e o resto do mundo, mergulhados até os últimos pedaços de pelo e pele na crença de que alguém ou algo vai nos salvar. Tudo reforça essa idéia: batismos, romances, filmes, hormônios sintéticos, mantras, comerciais de margarina, canções, oratórios, vitaminas, frases apócrifas de escritores célebres, livros de auto-ajuda, cirurgias plásticas...
E não é só essa a fonte dos nossos enganos: você nasce e já ouve que tudo é possível, que querer é poder, que quem espera sempre alcança, que não se deve desistir jamais e que quando uma porta se fecha, Deus abre uma janela. Aí você dá dois passos trôpegos na sua escolinha primária e já descobre (embora não aceite e passe a vida se esforçando por não aceitar) que as coisas não são bem assim.
Nem tudo é possível – e isso nos constrange a descobrir o que é melhor pra nós. Querer e não poder prova que há limites logo ali na esquina, onde está o direito do outro e isso nos torna mais humanos. Quem espera fica estático porque esperar é ação passiva e inútil; já aceitar... aceitar é a paz possível. Desistir pode ser uma decisão bastante sábia. Manter a porta e a janela fechadas talvez seja o melhor que Deus pode fazer por você agora. E o fato de que ninguém vai me salvar (nem te salvar) não exclui a verdade de que eu posso salvar a mim mesma e receber ajuda nessa tarefa. De alguma forma, em meio a tantos desenganos, é um alívio saber que, ao menos isso, é possível.
Stella Florence nasceu em 1967, é escritora formada em Letras e vive em São Paulo. Tem uma filha, 30 tatuagens e oito livros. É exatamente desse modo, objetivo e charmoso, que a autora de "Hoje Acordei Gorda" e "Ser Menina é Tudo de Bom", entre outros títulos, costuma se apresentar.
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