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A cura que sai da floresta amazônica [Jane Uchôa]



A cura que sai da floresta amazônica.

Este texto será um pouco diferente. Deixarei a Enfermeira e a Técnica de Enfermagem que vivem em mim, falarem um pouco. Estas duas ficaram caladas durante muitas postagens, mesmo aquelas em que o assunto saúde andou presente.
A floresta amazônica sempre foi alvo de muita curiosidade e pesquisa ao longo dos séculos, toda essa diversidade atraiu pessoas de todo o mundo e a biopirataria é algo combatido, porém real, apesar das operações que envolvem proteção da floresta.
Quando eu era criança ouvia muitas histórias acerca de medicamentos naturais e como meus avós curavam as doenças com chás, ervas e remédios caseiros, pouco tive contato com os remédios alopáticos (vendidos em farmácias) e esse conhecimento tão empírico, adquirido na minha infância, me fez entender melhor quando estudei em antropologia como o homem se comportava diante a doença.
Por isso hoje a técnica e a enfermeira vão escrever, serão as duas por que são distintas em suas experiências de vida. Eu via na minha infância minha avó curar dor de estômago com um chá de casca de laranja seca, ela fazia o chá e me dava, logo eu vomitava, escovava os dentes e tomava bastante líquido, claro que era um tratamento horrível, mas a dor da má digestão passava por força da expulsão do alimento e eu era hidratada com aqueles litros de água que era obrigada a tomar. Este método de “purgar”, “vomitar”, “extirpar” remonta a “Teoria dos Humores de Hipocrátes” que fazia seus purgantes e laxativos acreditando que o desequilíbrio dos líquidos no corpo é que fazia a doença e, ele não estava tão longe da realidade .
Hoje existem medicações que passam a dor sem fazer vomitar, e ao contrário do que era feito, se o paciente estiver com náuseas ele tomará um antiemético (remédio que evita o vômito) e se por acaso ainda assim vomitar ou tiver diarreia,  é hidratado, mas muito ao contrário do que era feito comigo, a hidratação hoje é pela veia com frascos de soro.
Quando tinha febre precisava ficar embaixo de um monte de coberta “para tirar a febre” e suava horrores, passava a fase quente e fria da febre embaixo dos lençóis, tomar banho nem pensar, antitérmicos não tomava e dependendo da origem da febre outras medicações eram introduzidas como, por exemplo: se fosse garganta ela enrolava o dedo no algodão e metia num vidro de copaíba depois passava na minha garganta, era horrível, mas curava. Hoje tomamos banho e antibióticos pesados que, além de caríssimos, afetam a função renal e estragam a flora intestinal.

Jucá, conhecido
em algumas regiões como "Pau Ferro"

Tinha também os remédios mais elaborados como o Mastruz com leite e Jucá com leite, este último eu tomei meses seguidos para curar uma tosse produtiva  que não tinha fim. Minha avó fazia o chá do jucá depois adicionava leite condensado dissolvido, batia um ovo, misturava e adicionava canela (era uma delícia) e assim me curou daquela tosse. Hoje existe inalação, antibióticos, antialérgico e as crianças que não respondem bem, acabam numa UTI com pneumonia e muitas delas no cemitério.
Quando eu me ralava era sagrado o merthiolate que não existe mais, com direito a soprar para não arder, hoje não pode soprar porque “contamina” e o merthiolate sumiu por que tem mercúrio e este é tóxico. Quando eu e minha irmã furamos o pé em um prego, ela fez um tratamento bem medieval, quase morremos de dor mas não perdemos o pé e nem infeccionou. Ela pegou uma vela de sebo de Yolanda (sebo de carneiro) e acendeu pingando quente dentro do ferimento. Claro que eu via estrelas, planetas, cometas, meteoros tudo o que você imaginar no céu passava diante meus olhos e três dias depois estava fechadinho. Hoje o menino fura o pé, a mãe leva no pronto atendimento sem nem lavar, chegando lá toma uma anestesia, o cirurgião abre mais o buraco e limpa lá dentro, é aplicado uma antitetânica se tiver atrasado na carteira de vacinação e faz curativo todo dia, mesmo assim, com tudo isso, as vezes ainda infecciona e precisa tomar antibiótico.
O creme de beleza que minha tia Isa usava chamava-se “banha de tartaruga”, até existia essas empresas de cosméticos de hoje, mas a banha de tartaruga era tão eficiente que ela tem um rosto lindo mesmo com 66 anos hoje, e até hoje usa! Se as empresas de cosméticos descobrem...
O tempo passou e um dia me vi trabalhando em um hospital como Técnica de Enfermagem, mas precisamente no setor de curativos e lá ouvi muitas histórias de medicamentos da floresta e a mais famosa era a “banha de cobra”, eu nem sabia que cobra tinha banha, mas enfim, vi muitos pacientes dizerem que utilizaram tal remédio e ficaram bons ou melhoraram com eles. Certo é que estavam ali para limpar suas feridas e chegar em casa colocar a “banha de cobra”, não recriminava mas reforçava que seria bom colocar somente ao redor da ferida por que, dentro, poderia “queimar”...claro que não queimava nada mas orientando assim, ele usava o que queria sem prejudicar a lesão colocando algo que não se sabe o que tem de sujeira por dentro. Ele saía feliz e eu ficava contente por poder tratá-lo sem lhe tirar de suas origens e crenças.
E falando como enfermeira, em antropologia aprendemos que o ser humano segue uma sequência de atitudes quando adoece. Preste atenção na próxima vez que você adoecer se não vai seguir estes passos...
A primeira pessoa que procuramos somos nós, é o nosso conhecimento, se sinto uma dor tomo um analgésico, se tenho alergia tomo um antialérgico e assim vou avançando dentro do conhecimento que tenho sobre medicação e doença. Se eu não resolvo, comento com um amigo ou parente próximo que dependendo do conhecimento,  tem sempre uma  “receita ” que ele tomou ou que o vizinho tomou quando esteve assim, depois disso se não resolvermos aí procuramos os médicos, os enfermeiros, o hospital ou pronto atendimento. As crianças correm para a mãe ou responsável que também tenta resolver primeiro antes de buscar ajuda. No caso da minha avó raríssimas vezes não funcionavam, pois não tenho lembranças de pronto socorro na minha vida infantil.
Estes remédios que citei: copaíba, jucá, mastruz com leite, banha de cobra e tantos outros que saem da floresta amazônica, ainda existem no interior do Amazonas aonde a saúde não chega tão fácil com os profissionais, médico e enfermeira. Também existe na capital a Pastoral da criança que fabrica a multimistura, uma ração feita com cascas e sementes de legumes, verduras e é adicionado na refeição de crianças com baixo peso, também fazem medicamento a base de ervas.
O comércio fitoterápico cresceu estrondosamente nos últimos 20 anos, o culto ao corpo e a adesão da naturalidade fizeram com que muitos elementos oriundos da floresta aparecessem em forma de cápsulas nas prateleiras das drogarias. Veja a copaíba que minha avó passava na minha garganta hoje é remédio industrializado e reconhecida pelos seus efeitos. O óleo da copaíba escorre do tronco da árvore, os animais feridos nas florestas se lambuzavam neste óleo para tratar suas feridas, os índios viram e levaram para seu pajé que transformou em remédio nas suas curas que, por sua vez, passou para os brancos que aqui chegaram.
Copaíba
A copaíba tem propriedades anti-inflamatórias e cicatrizantes, pode ser usada em várias partes do corpo onde há inflamação. Abaixo um trecho tirado de uma bula com cápsulas do medicamento.
“Ajuda a auxiliar no restabelecimento das funções das membranas mucosas, modificar as secreções e acelerar a cicatrização, podendo ser aplicado externamente em feridas, eczemas, psoríases e urticárias; Tem ação expectorante, agindo em problemas pulmonares como tosses e bronquites. Interna ou externamente, age sobre as vias respiratórias e urinárias, tornado-se um poderoso antisséptico; disenteria, incontinência urinária, cistite e leucorréia, tanto para uso adulto ou pediátrico. Com todas estas propriedades, o uso tópico do óleo de copaíba auxilia no tratamento de caspas e acne, sendo ainda um ótimo cicatrizante de pequenas irritações do couro cabeludo.”
Assim como o jucá que também se popularizou nas farmácias e hoje tem livre acesso para todos, suas propriedades encontradas por mim em uma bula são estas:
Chá de Jucá
É utilizado popularmente para Diabetes, diminuindo o volume da urina e sede, como anti-inflamatória, afecção catarral, amídalas, cólica intestinal, disenteria, garganta, gota, hemorragia, reumatismo, sífilis, tosse, hemorroidas, problemas cardíacos, como expectorante, fraqueza geral, afecções pulmonares.
Minha avó tinha toda a razão quando me tratava com jucá.
São inúmeros os medicamentos fitoterápicos ou “caseiros” como queiram, mencionei apenas alguns, mas precisamente queria mesmo era mencionar a riqueza da floresta amazônica e o quanto há escondido em suas matas, quantas curas ali existem e quantas ainda serão descobertas.
Faltou a banha da cobra não é?
Pois bem cientificamente não se encontrou propriedades curativas nos ofídicos. Na verdade o efeito é mais ligado ao hábito selvagem do animal, em nada contribui de fato, que pena, coitada das cobras.
O importante em um tratamento, além das diretrizes impostas ao paciente que recebe diversas orientações e um monte de frases que começam com “NÃO PODE”, é aceitar e respeitar suas crenças, sobretudo quando se trata de “remédios caseiros”, é mais fácil aceitar dois litros de chá de quebra pedra para cálculo renal do que receitar 02 litros de água, o poder da mente na crença pela cura é imensurável e um aliado nosso na recuperação do paciente.




“A afeição dos avós pelos netos,
 é a ultima etapa das paixões puras do homem.
É a maior delícia de viver a velhice”.

Bittencourt.






Jane Uchôa. Paraense de nascimento, amazonense de coração. Acadêmica de enfermagem, Técnica de enfermagem, socorrista do SAMU, poeta e escritora.







13 comentários

Elisabeth Lorena Alves disse...

Um texto rico de conhecimento. Não só sobre a cura que vem da natureza, mas da sabedoria de respeitar os cuidados impostos pelo amor da família.
Quando o amor cuida, as visitas ao Hospital raream, você pode ver isto pela sua experiência criando seu filho.
Quando investimos em amor, ao cuidar, eztamos tornando saudável n~ao só o corpo físico, mas o emocional. Uma criança bem cuidada, com limites, com amor, com atenção, cresce e torna-se um adulto feliz e realizado, disposto a investir em seus sonhos.
Se as famílias soubessem a importância de um chá para o lado emocional da criança, o hábito de curar feridas com tratamentos de choque como os da sua avó seriam perpetuados, pois acompanhado de um chásinho vinha sempre o amor.
Nossa Floresta é rica, nosso Brasil vasto em cura, pena que nóa estamos perdendo o costume de cuidar de quem amamos.
Beijos amiga!

Jane Eyre Uchôa disse...

É Beth, cuidar é uma palavra muito ampla e os antigos sabiam cuidar, hoje estamos com esta missão mais próxima dos profissionais de saúde porém percebemos que estão delegando somente a nós sem fazer a parte da familia. Muito triste isso, além de todas as adversidades comuns a saúde de nosso país, ainda temos estes percalços, obrigada pela visita e comentário. bj

Elisabeth Lorena Alves disse...

Jane esta é uma preocupação minha, pensar que as pessoas deixam de se preocupar com os seus terceirizando as responsabilidades.
Cuidar deixa para os profissionais da Saúde.
Educar deixa para os profissionais da Educação.
Impor limites deixa para a Sociedade>
A família, enquanto istituição, esta afundando a cada dia...
Perdemos não só a importante continuação dos remédios que fervidos resolviam grandes problemas, ma sperdemos também o verdadeiro significado da família.

Maria disse...

Ótimo Jane, é assim mesmo... Lembrei muito do meu interiorzão, do meu povo todo. Minha vó usava banha de jacaré para "desmentidura", meu pai descascava o caroço da manga e fazia chá para dor de estômago, assim como casca de carapanaúba (gosto horrível!!!). Fatias de cajú posto ao sereno, tinhamos que comer pela manhã cedinho para curar gripe...além dos chás de laranja, e o velho amigo chá de capim santo e o "caldo da caridade" - famoso "levanta defunto". Tantos outros recursos, muitos...bjs!

Jane Eyre Uchôa disse...

...e ficavámos todos bons!!!! Obrigada Maria pela visita e contribuição. bjs

Anônimo disse...

Informativo e bem escrito. Muito bom o seu texto, amiga.EDWEINE LOUREIRO.

Anônimo disse...

Belíssimo texto Jane Uchôa. Lembro da mamäe e seu arsenal de xaropes e chás e os indefectíveis metiolate e soro caseiro. Para desmentiduras, tinha o Dr. Menescau. E as rezadeiras. Nenhum bacuri permanecia doente por muito tempo. Quantos goles de copaiba, mel de abelha e andiroba o branquelo aqui teve que tomar... vários. Sempre fui um menino sadio, mas adorava brincar onde tinha areia ou debaixo de chuva. Tínhamos remédio para tudo. Parabéns pela abrangência e riqueza de detalhes. ROGÉRIO CAMURÇA

Onã Silva disse...

Bem sabemos Jane Uchôa sobre o poder terapêutico oriundo das plantas, comprovado cientificamente, a despeito da valorização da sociedade pela medicalização. Vivemos em tempos da cura industrializada, sendo que os males, as doenças e até as tristezas humanas recorrem a medicações. Mas, é tempo de refletir sobre a importância de ambas as possibilidades (dos remédios industrializados e dos remédios naturais). É bem certo de que a natureza é anterior as indústrias... Fica a reflexão!

ELÓI ALVES disse...

Excelente texto querida Jane, parabéns; muito rico pelos relatos e contrastes entre as medicina acadêmica, industrial e a tradição dos antigos... muito bom ver isso tudo pela opinião de uma profissional da área e com a capacidade e coragem de contrapo-las; abraços, amiga!

Jane Eyre Uchôa disse...

O tempo passa e a gente pensa que quanto mais tecnologia ou produtos químicos melhor, lêdo engano, vc lembra Rogério que o gosto amargo do remédio é que fazia a cura, que remédio doce não tinha efeito!rsrs. De fato Onã o poder das ervas é muito anterior a tudo que temos, inclusive na idade média que matarma milhares de mulheres curandeiras tidas como bruxas mas que na verdade cuidavam mesmo era dos doentes. Obrigada pela visita Elói, e vc falou uma coisa legal, em nosso meio muita das vezes desprezamos o natural e esquecemos que canja da galinha nao faz mal a ninguém, eu procuro aliar o que tenho para oferecer de (alopático) com o que o paciente tem para se restabelecer clao, sem colocá-lo em riscos desnecessários e assim vamos fazendo saúde. Obrigada ainda a Edweine e a todos que compareceram aqui e comentaram deixando suas experiencias com os remédios de nossas vovós.

Anônimo disse...

Amei amiga,vc é incrível....eu amo chás fui criada em santos,SP mas minha mãe foi criada na Bahia,então antes do médico tudo lá em casa era na base de ervas,eu sofria ao tomar mastruz com leite kkkkkkkkk..mas vim tomar antibiiótico pela primeira vez com 30 anos.Dora Rocha

Unknown disse...

Ótimo texto, quando pequena tomava de tudo que minha mãe me dava. Era remédio para tudo.... chá de alho,cebola,mel, umas misturinhas inexplicáveis kkkk mas tudo era para um bem maior: a cura....kkkk Sempre ficávamos bem, pois à maioria das vezes era o nosso socorro além de Deus mais presente. Parabéns.

Anônimo disse...

Texto muito produtivo,me remeteu ao tempo de minha avó tudo que vc falou ela fazia conosco e nunca fomos acometidos de nada mais grave.saudades dela e de seus ensinamentos.parabéns pelo seu trabalho!!!!