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AO VIVO [Edelson Nagues]


AO VIVO

não sei como cheguei aqui não me lembro as pessoas lá embaixo me olhando formigas carnívoras é o que são preciso mirar a linha e dar um passo após o outro sem me afobar mas as pernas tremem a cabeça gira e ainda esse vento não enxergo nada só as formiguinhas também não ouço nada a não ser o vento como naquela tarde em que ela disse eu não vou deixar você nunca nunca ventava como agora preciso alcançar o outro lado embora não saiba o que existe lá talvez leões porque em circo sempre há leões isso aqui é um circo não é também é possível que não porque essa lei de proteção aos animais mas há formiguinhas e elas me veem coberto de mel eu me sinto nu como uma flor à mercê da chuva é muito triste uma flor na chuva você já reparou ela sorriu e seu sorriso foi como o beijo frio da morte sempre ouvi dizer que a morte tem um beijo frio mas não era a minha morte não preciso dar mais um passo um por vez minhas pernas tremem não me obedecem os músculos estão duros retesados as formiguinhas esperam riem mas eu vou até o fim eu vou até o fim foi o que eu disse e ela sorriu mais uma vez como sempre ria de minhas declarações e eu ali feito bobo ria ou sorria não me lembro também tanto faz não sei por quê mas todo mundo ri de mim como as formiguinhas agora pensando bem acho que ela não ria não uma flor nua na chuva sobre a pedra dizendo que não era o momento vou dar mais um passo estou quase conseguindo ela não ria mesmo acho até que chorava mas pensei que fosse a chuva se pelo menos esse vento desse um tempo parece que diminuiu um pouco agora assim ufa consegui eu precisava dar mais um passo mas ela pediu que eu parasse queria ir mas minhas pernas travaram não me obedeciam não posso olhar pra baixo mas imagino a cara de decepção das formiguinhas se conseguir mais alguns eu nunca nunca vou deixar você minha alma é sua ela disse enquanto se afastava caminhando para trás ou tentava se afastar não sei ao certo nós dois em cima daquela pedra e o mundo lá embaixo eu paralisado ela nua deitada ou já estava em pé andando de costas devagarzinho se eu estava paralisado então ela já estava em pé e eu pouco me lixando pra alma dela só queria mesmo era o corpo porque só o corpo é presente só o corpo a gente toca acaricia e eu só queria acariciá-la mas sempre fui desajeitado meio abrutalhado não sei fazer carinho demonstrar sentimentos a vida é uma coisa triste você não acha ela disse quando nos conhecemos não sei de mais nada só sei das formiguinhas mais um passo e talvez elas desistam estendi-lhe a mão e pedi que ela desistisse isto é desistisse de desistir mais um passo e seria o fim e ela me disse com os olhos úmidos ou seria a chuva ela disse bobinho não me leve a mal eu perdoo você só não posso viver com essa dor e eu ali feito estaca querendo alcançá-la protegê-la em meu peito quando finalmente consegui me mover a mão ainda roçou a dela como num rito de despedida e o vento não me deixou ouvir o baque do corpo o corpo que há pouco fora meu quando ela queria me dar a alma eu que de alma não sei nada depois tentei reconstituir a trajetória dos corpos o dela e o meu mas não havia registros em minha memória o delegado dizia você precisa se lembrar pro seu próprio bem mas eu queria era dormir sinto muito sono de dia ou de noite não importa aliás está me dando sono agora mas tenho que dar mais alguns passos não sei quantos mas tenho depois fiquei alguns dias naquela cela fria sozinho até que o rapaz todo empertigado de terno me disse que eu passaria um tempo num lugar especial para tratamento eu sabia que não estava doente mas qualquer coisa era melhor do que continuar ali só me incomodava quando aquela enfermeira gorda vinha me aplicar injeção nunca suportei tomar injeção desde pequeno mas ela dizia que o doutor tinha mandado e já ia me furando o braço a perna a bunda onde alcançasse eu só não reagia porque aquelas cordas eram fortes me prendiam à cama mas um dia consegui me soltar então fiquei bem quietinho como se continuasse preso quando ela veio a gorda pulei em cima dela e tomei a injeção e cravei a agulha em seu pescoço pra ela ver como é bom foi sangue pra todo lado aí uns daqueles caras de branco vieram pra cima de mim e não lembro mais o que houve quando acordei já estava aqui em cima com esse monte de formiguinhas me olhando mais uns passos depois eu posso voltar a dormir só mais um pouco e


Do livro "Humanos" - (Scortecci Editora)


Edelson Nagues (nome literário de EDELSON RODRIGUES NASCIMENTO) é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Estudou Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. É poeta, escritor, revisor de textos e servidor público.É autor dos livros Humanos (coletânea de contos premiados) e Águas de Clausura (de poesia, vencedor do X Prêmio Livraria Asabeça), ambos publicados pela Scortecci Editora.É membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (de Cachoeiro de Itapemirim/ES) e mantém (ou tenta manter) o blog pessoal www.senaoescrevodoi.blogspot.com.

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