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Esqueleto criativo [Stella Florence]



Esqueleto criativo

Quantos tombos você já levou na vida? Desde que deu os primeiros passos destemidos e caiu sentada no amortecedor da própria fralda até aquele salto alto que enroscou numa falha do sinteco te transformando numa marionete sem titereiro, desde o primeiro até o mais recente, me diga, quanto tombos foram ao total?

Incontáveis, eu sei. E seu esqueleto, esse amontoado de cacos aparentemente rígidos, a cada tombo, assimilou o estresse e foi se adaptando. Se você fizer os exames certos, verá que seus tombos estão todos aí, gravados no seu corpo como cicatrizes que geraram outras cicatrizes que geraram outras cicatrizes que se tornaram essa dorzinha que você sente no cóccix sempre que lava louça ou nessas câimbras que te atormentam as madrugadas. A dor é um dos símbolos do quão criativo seu esqueleto pode ser na acomodação dos tropeços, pontapés e derrapadas inevitáveis da vida. 
 
Nossa alma também é um esqueleto criativo. Você bateu os olhos nele, gostou, ouviu sua voz, gostou mais, viu os livros que ele lia, gostou mais, o conheceu melhor, gostou mais, sentiu o cheiro da sua pele bem perto, gostou mais, riu das piadas que ele fez, gostou mais, assistiu ao movimento das suas mãos firmes, gostou mais, reparou em como o tempo flui mais leve quando vocês batem papo, gostou mais, foi jantar na casa dele, gostou mais, provou seu tempero, gostou mais, reparou nos seus cílios loiros, gostou mais.

Enquanto tira sua roupa pela primeira vez, ele diz: “Espero que isso não estrague nossa amizade”. Como é que é? Dois segundos para assimilar a observação. Um gosto de azinhavre toma conta da sua boca. Decepção cheira, parece e tem gosto de azinhavre. Você não o vê como um amigo, mas ele a vê assim. Você não gostaria de continuar apenas como amiga dele, mas ele sim. Estresse: seu esqueleto-alma se quebrou.

Quebrada, mas ainda desnuda e ainda sob o corpo dele, você tenta acomodar seus ossos emocionais o mais rápido que consegue. É hora de uma decisão imediata: ou você pula fora já e corta outras possibilidades de dor (assim como outras possibilidades de prazer) ou aceita o jogo e encara outras possibilidades de dor (assim como outras possibilidades de prazer). Seu esqueleto-alma se apruma diante do baque, engole o choro, se adapta, e decide seguir em frente mais um pouco.

Se tombos doem no corpo, imagine na alma.




Stella Florence nasceu em 1967, é escritora formada em Letras e vive em São Paulo. Tem uma filha, 30 tatuagens e oito livros. É exatamente desse modo, objetivo e charmoso, que a autora de "Hoje Acordei Gorda" e "Ser Menina é Tudo de Bom", entre outros títulos, costuma se apresentar.

Um comentário

Unknown disse...

Se precaver dos tombos físicos, é consideravelmente fácil, difícil é ficar imune às dores, dos tombos da alma. Ainda bem que as feridas do emocional, também cicatrizam com o tempo e a muralha de defesa cresce. Ai ficamos como aquele dito pop "gato escaldado tem medo de água fria". Amei sua crônica Stella! Continue nos presenteando por aqui com suas pérolas.