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Santa Maria/RS. [Jana Lauxen]

Santa Maria/RS.

Racionalizando.

Vamos esperar pela punição dos culpados.
Que eles sejam identificados e rigorosamente punidos.
Que erros (ou uma série de) possam ser imediatamente corrigidos.
Que uma tragédia desta magnitude sirva para que mudanças possam ocorrer, no sentido de evitar que catástrofes assim se repitam, seja em uma boate, em um restaurante, um cinema ou em uma loja de departamentos.
Você, leitor, possivelmente frequenta - ou já frequentou - casas noturnas, e sabe, como eu sei, que a generosa maioria não possui saídas de emergência, extintores de incêndio, seguranças preparados, e muito menos profissionais treinados para o caso de acontecer uma merda.
Uma briga, um incêndio, três tiros no teto.
Também você, assim como eu, nunca havia pensado nisso até então.
Por que não devemos (ou não deveríamos) nos preocupar com isso.
Afinal – óbvio! – o dono da boate não irá colocar a vida de seus 500, 1.000, 1.500 clientes em jogo para economizar meia dúzia de pilas, correto?

Não.

E se 235 pessoas tiveram de morrer (até às 00h51min do dia 31/01) para que o óbvio seja, enfim, colocado em prática, então é obrigatório tomarmos providências urgentes, sob pena de repetirmos a mesma desgraça uma outra vez.
Não se coloca 2.000 pessoas em um lugar onde cabem 1.000, e nem 1.000 num lugar onde só cabem 250.
Não se coloca duas vezes mais pessoas que a capacidade do local que as abriga, e onde existe apenas uma porta para entrar e sair e janelas lacradas com madeira.
E, PLIZ!, não se acendem fogos, rojões, sinalizadores e nem qualquer coisa capaz de gerar calor e faísca EM UM AMBIENTE FECHADO COM TETO DE ESPUMA ALTAMENTE INFLAMÁVEL!
Especialmente se este ambiente fechado estiver superlotado.
Não é tão difícil de entender.
É?
A tragédia da boate Kiss foi uma tragédia anunciada – mas anunciada somente para as autoridades, e não para seus frequentadores.
Outras tragédias continuarão a acontecer, até que as pessoas aprendam que focinho de porco não é tomada, e que prevenir sempre é melhor que remediar.
Ok. Esta é a parte prática da questão.
E, neste momento, a parte que a meu ver menos importa.


Sentimentalizando.

Porque até a revolta enfraquece no meio de tanta dor.
Eu não conhecia ninguém envolvido na tragédia, nem direta, nem indiretamente.
Também não conheço Santa Maria.
Todos aqueles nomes, aqueles rostos, aquelas ruas e aqueles lugares, tudo é absolutamente estranho para mim.
Mas, a não ser que você tenha suco de jiló correndo nas veias no lugar de sangue, não há como não se identificar, não há como não doer em você.
Não há como não se colocar no lugar daquelas pessoas: vítimas, pais, mães, sobreviventes, familiares, amigos, bombeiros, policiais, voluntários.
A morte sempre parece mais cruel quando vem para quem mal começou a viver.
A morte, sem nenhuma dúvida, é mais cruel quando leva filhos antes de pais.
E sempre é inacreditavelmente cruel quando é estúpida, descabida, inconcebível.
Repentina e totalmente possível de ser evitada.
Como foi em 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria/RS, na boate Kiss.
Tenho vontade de agradecer a Deus por estar viva.
Viva, lúcida, com saúde.
Estou aqui, mas poderia não estar.
Por negligência e descaso alheios, poderia não ter tido a chance de entrar para a faculdade, e menos ainda de me formar. Não viajaria de avião, não faria novos amigos, não mudaria de ideia, de casa, de cidade, de sonho.
É horrível quando uma história acaba pela metade, e mais horrível ainda quando termina no começo.
E foram, até agora, 235 histórias interrompidas, recém-iniciadas.
143 meninos e meninas ainda estão hospitalizados, 75 em estado grave.
90 precisam de ventilação mecânica para respirar.
E não gosto nem de imaginar o inferno em que se transformou o simples fato de se estar vivo para centenas de pais e mães, que esta semana cumpriram a difícil e injusta tarefa de enterrar suas crianças.
Aqueles caixões brancos, rosas, adornados com flores, ursinhos de pelúcia, bandeiras do time do coração, o chapéu de gaúcho preferido.
Terminado o dolorido funeral, é voltar para casa, para o quarto vazio, para o telefone que não toca, para a porta que não abre mais e para o filho que não volta para casa depois da faculdade, do trabalho, da rua.
Essa meninada não havia nem começado.
Eu, com 28 anos, ainda nem comecei, e a maioria era tão mais jovem do que eu!
Mas e a morte se importa com isso?

Não.

Ela vem sem pedir licença e sai sem avisar, levando junto quem não poderia levar jamais!
E nós, pequeninos diante de sua força e de sua capacidade de destruição, fazemos o quê?
Ficamos aqui, com estas caras de desguarnecidos que estamos agora, tentando entender, decodificar, compreender por que, do que, com quem, de que jeito.
Eu rezo.
Sim, é o que me resta.
Rezo para agradecer pela minha vida, que continua aqui, e pela vida de quem eu amo.
Por estes meninos e meninas que se foram cedo demais.
Rezo para que – sei lá eu de que jeito! – estes pais, estas mães, irmãos, avós e amigos possam encontrar alento, e motivos para continuar vivendo.
Peço por nós, gaúchos, brasileiros, seres humanos, tão frágeis e minúsculos nesta vida que não entendemos, e na morte, que nunca aceitamos.
Morte que foi levando embora tanta gente, tão jovens, sem nenhuma explicação.

Que Deus nos tenha.


Jana Lauxen é escritora, colunista da revista Café Espacial e editora da Multifoco.

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