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Um besouro na biblioteca [José Castello]

Um besouro na biblioteca


O que um besouro tem a dizer a respeito da literatura? Passei a meditar sobre este estranho tema depois de receber um email de meu amigo Claudiney Ferreira, em que ele relata um sonho que nos envolve. Tento resumir um sonho que não é meu _ o que é, em si, uma dupla impossibilidade. Mesmo assim vou tentar. Tudo para chegar ao besouro e, dele _ como sempre_ à literatura.

Estamos em uma cozinha onde se cometeu um assassinato. Não podemos ver o rosto do cadáver, caído ao lado do fogão. Quem será o morto? E por que estamos, Claudiney e eu, tão aflitos? Há um besouro (única testemunha) pousado sobre a borda da pia. Agindo como um detetive, passo a interrogá-lo. Sim: eu interrogo o besouro e ele, evidentemente, nada me responde.

Exasperado, resolvo ir embora, não sem antes deixar Claudiney com a infeliz missão de prosseguir o interrogatório. Meu amigo me pergunta _ já que insetos não falam _ como levará o besouro a falar. Eu lhe sugiro que, em vez de esperar por isso, simplesmente "leia" o besouro. "Leia" seus movimentos, seus esboços de vôo, seus tremores, seus pequenos passos. Faça do besouro, um livro.

É o que me recordo do sonho que Claudiney me contou. Em um email seguinte, meu amigo _ tentando, provavelmente, me infernizar ainda mais _ me recorda uma frase do Barão de Irararé: "Segundo os técnicos, o besouro não pode voar". Talvez possa voar, mas certamente não pode falar. E, no entanto, um besouro pode ser lido. Sim: como se fosse um romance de Flaubert, um tratado de filosofia, ou uma enciclopédia.

Ruminei o sonho e os motivos que levaram Claudiney a me entregá-lo. Meu
amigo está sempre a me oferecer charadas. Gosta de me desafiar com questões absolutamente questionáveis e que, no entanto, ou por isso, não saem de minha cabeça. Eis uma delas: o sonho do besouro. Como sempre faço nessas horas, subo para minha biblioteca. Como um inseto insolente, um invasor, passo a sobrevoar meus livros em busca de ajuda.

Só que nela nada encontro além de uma aranha marrom. Curitiba está cheia de
aranhas marrons _ insetos que carregam um veneno letal. 
Apesar de meu esforço higiênico, elas se escondem nos vãos de minha biblioteca. Quando mexo nos livros guardados nas partes mais secretas, uso sempre luvas plásticas, dessas com que lavamos a louça. Pois bem: subi para procurar um besouro, e encontrei uma aranha. Eu estava _ logo me dei conta _ em uma continuação do sonho de Claudiney. Em sua "parte 2".
São assim os escritores (é assim a literatura): tudo, sempre, se conecta. Se levo
um tombo, não fui eu quem o levou,mas o personagem de uma ficção que ando escrevendo. Se acordo mau humorado, o mau humor não é meu, mas de outro personagem da mesma narrativa. Nada é meu. Nada me pertence, vivo em um mundo postiço. A literatura é um buraco negro que suga tudo ao seu redor. Dizendo de forma mais simples, já que comecei a falar de um crime cometido em uma cozinha: a literatura é um ralo.

Por que diabos Claudiney me relatou seu sonho? Bem, meus amigos sabem que sou apaixonado por sonhos. Que sonho sem parar e isso, talvez, me defina como homem. Talvez Claudiney tenha feito isso para me recordar de um vício pessoal, que alimento como um cactus raro: o de sempre, sempre mesmo, ler tudo o que me cai nas mãos. Não apenas livros, é bom enfatizar. Ele sonhou com meu vício e me devolveu esse vício para se livrar dele. De certa forma, o sonho, em vez de lhe pertencer (e embora sonhado por ele, e não por mim), era meu. É meu. Aqui tomo posse de um sonho alheio _ como se toma posse de um cargo público. Uma vez empossado, tento fazer alguma coisa do sonho que me deram. Ou que me devolveram.

Onde quero chegar? E lá sei eu? Essa lição aprendi com Rubem Braga: um escritor
precisa saber de onde deseja partir. 
Quanto ao ponto de chegada, isso não lhe diz respeito. Até porque, a rigor, ele não existe. Um escritor não chega a lugar algum, um escritor se limita a partir e isso já é bastante cansativo. Ainda assim, mesmo não chegando, se caminha. E muito. Então vamos em frente!

Nem eu, nem Claudiney podíamos ver ("ler") o rosto da vítima. Era uma página em branco, era um livro fechado. Para decifrar esse rosto vazio, era preciso ler outra coisa em seu lugar. "Ler" um besouro. Nunca lemos o livro "certo": estamos sempre deslocados em relação a nossos desejos. Queremos uma coisa e temos outra. Viver é desencontrar-se. Existir é desistir de chegar a si e contentar-se em ser aquilo que se é.

Pois bem, já que não podia ler o rosto da vítima, parti para o besouro. Primeiro
tentei interroga-lo _ mas um livro (e já provei que um besouro é um livro)não se interroga. 
Ninguém diz para o "Quixote", ou para "Madame Bovary": "Vai, fala aí! Abre essa boca!" Livros não têm boca e, caso faça isso, você só receberá de volta um grande silêncio. Um livro (um besouro) não se interroga, mas se lê. Em vez de perguntar, é preciso ficar quieto. Em vez de desejar, é preciso escutar. Lemos em silêncio, e é mergulhados no silêncio que uma história se forma dentro de nós. Experimente ler "O processo" e recitar ao mesmo tempo um discurso do presidente Barack Obama! Não vai dar certo.

Para ler, ainda que seja ler um besouro no interior de uma cozinha, precisamos de
certa concentração e,ainda, de algum relaxamento. 
Tudo o que me faltou e me fez ir embora, deixando Claudiney em meu lugar. Leitura não combina com exasperação. Leitura pede serenidade, como a que domina em minha biblioteca, apesar dos movimentos secretos das aranhas marrons. Só em uma biblioteca _ ou como se estivéssemos em uma biblioteca _ podemos ler um besouro.

Sim: podemos (e devemos) ler no vagão do metrô, na sala de espera dos aeroportos, na fila dos bancos. A biblioteca _ esse acervo íntimos de sonhos e de relatos e de interrogações _ é algo que carregamos dentro de nós. Quando lemos, perdemos nosso rosto. Ou melhor: nós o engolimos, e colocamos esse "museu interior" em seu lugar. Bem, agora sei quem é o morto caído na cozinha do sonho de Claudiney: o leitor! Arrancou o próprio rosto para se entregar a um sonho escrito. Talvez tenha morrido de um livro que leu. Talvez esse livro fosse "A metamorofse". Talvez fosse o besouro. Vá se entender nosso mundo interior! E por isso, só por isso, a vida é tão encantadora.


José Castello -Jornalista e escritor, colunista do caderno Prosa, de O Globo, autor de "Vinicius de Moraes: O poeta da paixão" (Companhia das Letras, 1993), "Inventário das sombras" (Record, 1999) e "A literatura na poltrona" (Record, 2007), além de "Ribamar" (Bertrand Brasil, 2010, prêmio Jabuti de melhor romance de 2011)

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