Que musas inspiram um processo de reabilitação urbana que não implica edifícios nem construção e que vive desde há poucos meses no miolo de um quarteirão central do Porto? Sem esse sopro vivo de inspiração, ali na Fontinha, um dos pontos mais altos da cidade do Porto, com belas vistas escondidas pelo abandono e esquecimento, seria difícil imaginar a Quinta das Musas. E a poesia é concreta, trata-se de trabalho que devolve produtividade agrícola a quintais e hortas que ressurgem, dia a dia, trabalho voluntário de gente muito diversa— unida por um projecto que faz agricultura e promove comunidade.
Entre o Bonjardim (rua antiga e prestigiosa por onde se entra para a Quinta) e Santa Catarina existem, ocultas de quem passa, realidades que diríamos totalmente ausentes da cidade que vemos todos os dias. A área verde, no total dispõe de uns milhares de metros quadrados poupados ao betão.
Desde Janeiro, um conjunto de pessoas --que vai aumentando-- prepara os terrenos, retira silvas e entulho acumulado, esquadrinha lotes e semeia, e planta, e cuida, fazendo agricultura urbana que pode ter bela função lúdica e educativa, mas que vai para além disso: à sua pequena escala, é de «soberania e segurança alimentar» que se trata. Tópico essencial nestes dias de incerteza.
Dar vida útil e produtiva a uma parte dos «quarteirões verdes» que no seu interior albergam ainda solo fértil, biodiversidade, fontes de água, árvores, eis o que é também reconversão urbana e recuperação ambiental e social da Baixa.
Entre «mineralizar» e «vegetalizar», os animadores da Quinta das Musas, onde se destaca como pioneiro o engenheiro florestal Francisco Flórido, optaram pela segunda.
Os problemas sociais, que a crise e a recessão programada dos próximos anos apenas agravarão, pedem respostas ao nível local, imaginativas, integrativas, apelando à generosidade e ao talento das pessoas. Os moradores da Fontinha aderiram com entusiasmo a este ressurgimento, a esta nova animação de um sítio que parecia condenado ao marasmo e à decadência.
Mudar a cidade, repovoar e dar vida à Baixa, atrair gente e actividade, não pode passar apenas por operações urbanísticas «pesadas» nem por um excesso de culto da fachada antiga, mas impõe abordagens variadas. Nem a «movida» portuense pode ser redutora e passageira: fixar actividades e configurar relações de comunidade, de vizinhança— que aliás sempre caracterizaram o Porto e os seus bairros e ruas populares--é tarefa morosa, mas possível.
Quem quiser ver a cidade a transformar-se para melhor, em benefício da saúde e do bem estar de quem lá trabalha e graciosamente ajuda, ou «adopta» um lote para aí cultivar os seus frescos, as flores ou as ervas aromáticas, deve observar esta Quinta da Musas de tão agradável estro criativo.
Durante demasiado tempo ficaram para trás, valores que não deveriam ter sido esquecidos. A importância da terra está entre esses valores. As couves, os tomates, as frutas de cores chamativas, não saem de máquinas embaladoras ou do bojo de algum servidor electrónico: verdade elementar que importa difundir, já que a artificialização da vida traz consigo uma insinuante alienação das coisas mais óbvias.
Portanto: cidadania, participação, voluntariado, espírito de cooperação, regeneração urbana, demonstração pelo exemplo. É assim que se reduz a espessura do monte de «convenções» e de «impossíveis» que nos impedem de criar coisas novas e de mudar a vida.
Que as musas sejam sempre favoráveis aos criadores de jardins e oficiantes de hortas no centro da cidade. Que o seu exemplo floresça como as rosas de Maio e as ideias poderosas cujo tempo chegou!
Bernardino Guimarães
(Crónica publicada em Jornal de Notícias, 24/5/2011)
BERNARDINO LUÍS DE MOURA MACHADO GUIMARÃES-Escritor, cronista e jornalista independente, dedica-se há vários anos ao jornalismo e divulgação ambiental e de temas científicos. Foi fundador e editor da revista «Tribuna da Natureza» e colaborador regular no diário (já desaparecido) «O Comércio do Porto».
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