Rótulos
por Lohan Lage Pignone
- Oi, vem cá, onde você trabalha?
- Oi... É uma oferta de emprego, seguro de vida?...
- Não, é que... É que só quero falar com você. Conversa comigo.
- É assim que você costuma abordar as mulheres? Perguntando onde elas trabalham?
- É, eu acho importante.
- Importante o que?
- O trabalho. Dignifica o homem, logo, dignifica a mulher também. Segundo a lei dos homens e a lei de Deus, somos iguais em tudo, exceto em alguns órgãos, claro. Se bem que órgão diz bulhufas.
- Tem certeza que quer continuar esse papo brabo comigo?
- Absoluta. Algum problema em dizer onde trabalha? A não ser que você seja espiã, trabalhe pra CIA, não sei.
- Eu não digo aonde eu trabalho pra desconhecidos. Pode me dar licença?
- Eu trabalho no Mc’ Donald. Pronto, agora você me conhece.
- Ok, ok... Você venceu. Eu trabalho numa cafeteria. Tá bom assim?
- Cafeteria? Isso existe?
- Coffee bar, Cyber coffee, não tenho ideia de como chamam no Brasil.
- Você entornaria café na minha blusa se eu fosse à cafeteria onde você trabalha, pra depois dar uma desculpa esfarrapada e tirar casquinha do meu corpo?
- Você não vai a cafeteria onde eu trabalho por que... Ela fica em Toronto.
- Toronto... Canadá? Espera, se você trabalha no Canadá, o que faz no Brasil?
- Converso com você.
- E o que fazia antes de conversar comigo?
- Vim rever amigos.
- E parentes.
- Não tenho parentes. Por favor, eu quero passar.
- Como não? Quem não tem parentes? Nem uma prima de terceiro grau que dizem ser muito parecida com você?
- Não, nada, ninguém.
- Você é solitária.
- Eu sou solitária? Você que para uma desconhecida no meio da rua pra conversar e eu sou solitária?
- Ok, eu sou solitário, me ajuda. A propósito, eu não trabalho no Mc Donald. Sou comunista. Eu testei você, queria ter ouvido dos seus lábios ressequidos pelo frio canadense algo do tipo “putz, que azar”, ou “eu odeio aquela corja nojenta e capitalista que cospe no cheddar dos fregueses”, ou... “você já leu Karl Marx”?
- Não fala assim do Mc Donald, eu como lá desde que me conheço por gente e olha, sou magra. Minha mãe diz que a primeira cárie que eu tive foi da tortinha de maçã. Eu tinha três anos quando provei. Ah, e eu tenho todos os brinquedinhos de todos os Mc’lanches felizes de todos os tempos. A coleção do Toy Story é a minha favorita!
- Você é insana! Você... Você tem cara de quem é contra o sistema!
- Como assim eu tenho cara disso? Que mané sistema!
- Você, você... Tem o cabelo mal lavado, olheiras, sardas, veste um jeans surrado, calça All Star e... Anda livre.
- E você anda preso!
- Preso?
- Preso a rótulos idiotas. Ainda bem que sou livre pra calçar o meu All Star de 1999 e poder ir ao shopping só pra tomar Milk-Shake, entrar numa livraria pra ver as capas dos livros de autoajuda e constatar que nenhum deles serve pra mim, colar chiclete debaixo do assento do cinema, tomar uma Coca gelada e soltar um big arroto, tudo isso depois de ter assistido a um filme do François Ozon, e aquela plateia lá, cheia de velho e metido à cineasta, reclamando da minha estrondosa eructação. Posso ir a Igreja aos domingos, tomar o corpo de Cristo e à noite tomar o corpo da primeira gata que eu esbarrar num bar, isso tudo porque sou contra o aborto e, tirando vocês, homens, da minha vida, eu nem corro esse risco.
- Você é católica?
- Não se espantou por eu ser lésbica?
- Eu já imaginava. Eu sou gay. Enrustido, mas sou. Meu pai é militar, minha mãe é carola. Dou uma de comunista revoltado com o sistema pra criar um pretexto sólido da minha súbita libertinagem que, em breve, vai arrancar as portas do armário. Passei a criar ódio de militar, polícia, tudo que lembra a DOI-CODI. Me excomunguei da Igreja e digo não acreditar mais em Deus, pra não ser incoerente com a minha revelação, né.
- Peraí, você... Você me achou mesmo com pinta de sapatona?
- Ora, mas você não acabou de dizer que é? Eu só suspeitava...
- O problema, meu querido desconhecido, é que eu não sou lésbica, eu... Eu menti pra você! Eu só queria te dar um passa fora sutil. Agora, pra encerrar isso tudo, me explica uma coisa: se você é homossexual, por que me abordou assim, do nada, no meio da rua?
- Tá vendo aquele marombado ali, do outro lado? Ele é meu affaire. Tô de rolo com ele, um cafajeste ele é. Tô causando um ciúme, entendeu agora? Olha pra ele, olha pra carinha de raiva dele. Quem mandou me enganar com outro. Pois eu o traio com uma mulher! Vai doer o dobro!
- Quer dizer que esse tempo todo eu estou sendo usada por você? Isso só pode ser uma pegadinha! Eu vou embora, agora é sério.
- Não, espera! Eu te imploro, só falta mais uma coisa.
- Vai, desembucha de uma vez então...
- Preciso que me beije.
- Beijar... Na boca?
- Ai, claro, né! Se for pra beijar minha testa, se declara logo a minha best friend e pronto!
- Sei lá... Tá meio louco isso tudo. Beijar essa boca... O que você já fez com essa boca, hein?
- Nem queira imaginar, meu bem. Dói até a garganta, só de pensar!
-Não, nesse ponto eu não ligo... Me refiro a coisas comestíveis, do tipo de gente que tem aquela síndrome da pica, que come merda, fósforo queimado, terra com esterco e o escambau.
- Não, querida, essa pica eu dispenso. Agora me beija, beija logo, ele tá indo embora, olha lá! Rápido!
- Seja o que Deus quiser...
(...) (...) (...) (...)
- Tá, chega. Foi longo demais, e ainda foi de graça.
- Foi o melhor beijo de toda a minha vida. Você fez eu me sentir um... Macho!
- Ok, o seu boyfriend já foi, vai lá atrás dele, se reconcilia, façam as pazes numa cama de motel e abandona esse personagem de uma vez.
- Você gostou do meu beijo? Eu beijo muito, não beijo?
- Não, você beija mal pacas, como um gay deve beijar. Tchau, foi um prazer.
- Ei! Espera! Você nem me disse o seu nome!...
- Jane Blow Job. É como sou conhecida no Canadá. Se um dia precisar de algo mais, pode me procurar numa cafeteria de Toronto...
Orgulhoso, atravessou a rua.
- Hoje o Chopp tá na tua conta, seu trouxa! Eu te garanti que beijava uma lésbica, não garanti?
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LOHAN LAGE PIGNONE-Graduado em Letras (Port./Lit.) pela Universidade Estácio de Sá. Professor da rede Estadual do Rio de Janeiro, músico e roteirista.
Publicou, em 2011, o livro "Poesia é Isso" (Ed. Multifoco) e, por dois anos consecutivos, foi eleito destaque em arte e cultura na cidade onde reside, Trajano de Moraes (RJ).
Possui textos no blog coletivo Autores S/A. Escreve, mensalmente, para a Revista Samizdat.
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