Na página “O mundo em pessoa”, do portal português Sapo.pt, a Universidade de Lisboa está analisando quais são os versos que os internautas mais conhecem. O site foi lançado devido ao 125º aniversário do poeta português, o qual tanto influenciou a literatura mundial com seus pensamentos e criações.
De acordo com o levantamento do site, o poema “Tabacaria” do heterônimo Álvaro de Campos é até agora o mais citado na internet, tendo muita popularidade nas redes sociais.
O objetivo do projeto visa “ampliar o número de leitores e o conhecimento de sua obra”. Tendo em vista esse intuito tão digno de aplausos, aproveitamos a notícia e o que vocês acham de conversarmos um pouco mais sobre esse ícone da literatura lusitana? Bem, vamos lá.
“Navegar é preciso, viver não é preciso”, e foi assim que o general romano Pompeu incitou os marinheiros a perderem seus medos para viajarem durante os períodos de guerra. Séculos depois, Fernando Pessoa utilizou essa frase em uma de suas obras as quais abordam o processo de criação, feitas pelo próprio ortônimo:
“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: “Navegar é preciso; viver não é preciso.”
Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.”
Fernando Pessoa foi um ícone da literatura mundial cuja vida era voltada para criar. E, não satisfeito, criou outras pessoas. Fernando Pessoa não é somente uma pessoa, são várias, e todas elas têm características próprias. Conhece os heterônimos? Vamos falar brevemente sobre cada um deles:
1 – Alberto Caeiro:
Poeta da simplicidade, o qual acredita que “pensar é estar doente dos olhos”. De todos os heterônimos, foi o que teve a formação educacional mais baixa. Suas poesias são delineadas por uma escrita simples e direta. Segundo descrições de Fernando Pessoa, Caeiro é loiro dos olhos azuis, de uma brancura sem fim, corpo frágil. Totalmente antimetafísico, procura levar a vida de maneira subjetiva, sempre atento às novidades do mundo. Sobretudo, um poeta da natureza, cheio de sensações, porém recusa o misticismo e o paganismo. Para Caeiro, Deus está em todas as coisas, sobretudo nas coisas simples. O próprio criador, e o mais incrível, também seguidor da própria cria, Fernando Pessoa descreve Caeiro da seguinte forma:
“A um mundo mergulhado em diversos gêneros de subjectivismo vem trazer o Objectivismo Absoluto, mais absoluto do que os objectivistas pagãos jamais tiveram. A um mundo ultracivilizado vem restituir a Natureza Absoluta. A um mundo afundado em humanitarismos, em problemas de operários, em sociedades éticas, em movimentos sociais, traz um desprezo absoluto pelo destino e pela vida do homem, o que, se pode considerar-se excessivo, é afinal natural para ele e um correctivo magnífico.”
Eterno guardador de rebanhos, Caeiro influenciou Fernando, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Poeta da negação “quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois”, da ode à infância e da simplicidade da mesma, justamente pois uma criança, segundo ele, não pensa, apenas vive de sensações. A ausência de tempo é marcada em sua poesia, junto com sua intensa harmonia com a natureza.
“O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender …
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar …
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…”
2 – Ricardo Reis:
Defensor da monarquia e seguidor do Carpe Diem e Tempus Fugit. Vive nos moldes do Neoclassicismo. Seus poemas tem como tema o bucolismo, e vemos neles muitas referências à cultura latina. Foi discípulo de Caeiro e, assim como ele, procura seguir a ideologia do Epicurismo, ou seja, a busca por uma vida tranquila onde não se teme a morte e vive-se dos pequenos prazeres da vida. Os envolvimentos por parte da emoção são vividos por conta do ideal do Estoicismo, no qual as emoções são controladas e sempre vistas pelo ponto de vista da razão, pois quando excessivas podem minar com a liberdade, e Ricardo Reis prezava-a acima de todas as coisas. A vida é efêmera e o tempo é fugaz, logo a vida não deve ter espaço para angústias e aprisionamentos de qualquer espécie. Podemos ver isso no poema “Lídia”:
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
3 – Álvaro de Campos
Também discípulo de Caeiro, mas se comparado com Ricardo Reis, veremos que ele navega em sentido totalmente oposto. Álvaro é indisciplinado, anárquico. Pensa no mundo como se ele fosse uma locomotiva a vapor. Ele tem a urgência das sensações, quer “sentir tudo e de todas as maneiras”, e isso é marcante em sua escrita cosmopolita e cheia de vanguarda em tons futuristas. Sua escrita é moderna, seguida de fases: Decadentismo/Futurista e Sensacionista/Pessimismo.
Na fase Decadentista, o tédio traz ao leitor uma falta de sentido para a vida. A poesia de Álvaro nesta fase é marcada por características das escolas do Romantismo e do Simbolismo, sempre em busca de sensações novas que possam tirar-lhe a monotonia que tanto o atormenta.
“E afinal o que quero é fé, é calma/ E não ter estas sensações confusas.”
“E eu vou buscar o ópio que consola.”
No futurismo/sensacionista, vemos que a profissão de Álvaro de Campos delineou as esferas modernistas que caracterizam sua obra nesta fase. A invenção das máquinas é o símbolo da vida moderna. Sua fúria é a “nova revelação metálica e dinâmica de Deus”, e o maquinismo em fúria dá o tom às sensações, que por sua vez exaltam certa “náusea”, pois a modernidade, além do triunfo, traz a poluição e demais males para a vida. Álvaro tem a crença de que tudo o que existiu deve ser unificado, pois tudo o que se manifesta em vida, exprime energia e força. A vida não existe sem ambas, e tudo deve ser sentido até a exaustão, como a fúria de uma locomotiva.
“Rasgar-me todo, abrir-me completamente,/ tornar-me passento/ A todos os perfumes de óleos e calores e carvões…”
`Em “O Eu profundo e outros eus”, Ricardo Reis traz sua percepção a respeito de Álvaro de Campos:
“O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos determina-os ele pelos fins dos versos. Campos é um grande prosador, com uma grande ciência é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso.“
Abaixo, um trecho do poema “Ode Triunfal”. O poema é extenso, mas quem se interessar pode encontrar o texto na íntegra no site DomínioPúblico.org.
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Na fase do pessimismo, Álvaro traz o sentimento de um marginal cansado da vida: “Um supremíssimo cansaço, /íssimo, íssimo, íssimo, /Cansaço…”.
Ele questiona o amor no mundo, sente-se incapaz de unificar mente e sentimento. Carregada de ceticismo, a poesia desta fase traduz a dor de pensar, o sono, a angústia e a frustração. A infância é vista como uma felicidade perdida, que não terá mais volta. No poema “Tabacaria”, encontramos de maneira escancarada toda a dor e otimismo perdido que impera nesta fase, o tudo e o nada que existem na realidade, do ponto de vista humanista:
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
0 mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;.
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num paço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
4 – Bernardo Soares
Não é considerado um heterônimo, mas sim um semi-heterónimo, segundo Fernando Pessoa. Autor do “Livro do Desassossego”, Bernardo Soares é como um “eu mutilado” de Fernando Pessoa.
“O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as faculdades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual (…)”
5 – Fernando Pessoa:
O pai dos heterônimos, criou uma estética única ao criá-los com características distintas. Promoveu a reflexão sobre todas as características que nos diz respeito aos questionamentos humanos, sejam eles sobre Deus, sensações, existencialismo, identidade do homem perante seus semelhantes. Sua obra ortônima, ou seja, de Fernando Pessoa por ele mesmo, é regada de misticismo, tragédias e heroísmo. Dizem que o autor possuía envolvimentos com sociedades secretas, tais como a Maçonaria, o que explica o misticismo presente em suas obras. Além disso, é rica em constante presença de elementos do simbolismo, inseridos em uma poesia sonora, carregada de subjetividade e metáforas.
“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.”
Ler Fernando Pessoa e seus heterônimos é viajar para um mundo filosófico, para lugares longínquos; é, sobretudo, refletir sobre sobre a razão e as metáforas da existência. É querer sentar em um gramado e viver o bucolismo durante um dia todo. É querer andar em locomotivas e sentir toda a fúria da invenção do homem transcender em trilhos de sensações que se abandonam ao descer na estação. Descer na estação e sentir, ou fingir, que carrega dores e pessimismo. É ter olhos desacostumados às coisas desalmadas, é ter olhos nítidos, como um girassol, é sentir o Efêmero, mas saber que o Tempo passa, assim, fugaz. Saber que a morte é a única certeza que temos na vida. Saber viver sem preocupações mas se acabar pensando nos rumos da sociedade. Quem lê as obras e “pessoas” criadas por Fernando, torna-se um guardador de rebanhos, ajoelha-se perante à ode triunfal da modernidade e suas invenções, e sabe que a vida passa, tal como o rio, como o tempo. Quem lê Fernando é um eterno leitor do desassossego. Navegar é preciso… Ler Fernando também.
Ana Idris 25 anos, Analista de Sistemas e escritora insone de Campinas. Peixe fora d’água, borboletas no aquário, um homem, um bicho, uma mulher, a mesa e as cadeiras do cabaré, com toda licença poética de Gessinger e Ney Matogrosso. Garrafas de vinho com rosas na estante e vício em literatura, flamenco, artes visuais, semiótica e música. Quer escrever um livro nos cafés parisienses tal como Hemingway. Ama, incondicionalmente.
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