Pança Cheia [Cinthia Kriemler]
— As senhoras queriam tanto saber! — lamentou-se Edugival.
— Queríamos, mas nunca esperamos ouvir tanto sacrilégio! — repreendeu D. Iracilda, se abanando como se lhe faltasse o ar.
— Ora bolas, Irá, menos drama e mais compreensão por aqui, porque o que esta alma precisa é de ajuda! — intercedeu D. Rosa, zangada.
Edugival farejou o mau hálito de uma tempestade soprando, mas sabia que não tinha mais como voltar ao cais seguro das tangentes. Após 34 anos de vida inteligente, sentia-se, agora, uma besta cativa da sanha das Rosas, Iracildas e Marianinhas.
— Meu filho, você está errado — recomeçou D. Rosa.
Se tinha uma coisa que Edugival não fazia era enganar. Nem enganava, nem fugia de uma boa discussão. Evitava, é verdade, mas uma vez o leite derramado, que derramasse até coalhar!
— Não estou não, D. Rosa — respondeu polido, mas inequívoco.
D. Rosa pestanejou, assustada. Não estava acostumada a confrontos. Suas duas filhas a respeitavam mesmo depois de casadas, e seus genros nunca tinham ousado discutir com ela. Era viúva e comandava as senhoras de igreja. E todo o mundo tinha por certo que até mesmo Padre Jonas morria de medo dela.
— Edugival, você está errado!
O extenso do nome mostrou o tamanho do dano. Mesmo assim, o rapaz não recuou.
— Não estou não! E desafio qualquer um que consiga discutir bons argumentos, ao invés de apenas atacá-los, a debater comigo os meus pontos de vista e os da Igreja.
— Cale a boca, rapaz, cale essa boca onde o demônio habita!
— Opa, opa! Só abri a minha porque a senhora não segurou a sua!
Pronto! Foi o basta! D. Rosa partiu feito louca para cima de Edugival e quis alcançar o rapaz com a mão aberta, mas o bofete se congelou no ar, subitamente, e a fúria estampada no rosto de rugas deu lugar a uma expressão de dor contorcida. E ela desabou no chão.
— D. Rosa? D. Rosa?
Atraída pelo barulho do corpo no assoalho de madeira, D. Santa, a mãe de Edugival, correu até a sala, abandonando a cozinha onde preparava o lanche que servia às senhoras da igreja nas tardes de sábado.
— Meu Deus! O que houve, Eduzinho?!
— Não sei, Santinha, não sei! Ela estava para me dar um tapa quando parou de repente e desabou como um muro velho!
— Tapa? Por quê?
— Santinha, acho que agora não é hora para essa conversa! Eu preciso ligar para o doutor, porque D. Rosa não parece estar nada bem!
Horas depois, a cidade inteira comentava a morte de D.Rosa “por causa do Edugival”, e pouca gente falava do infarto. Causava mais espanto “um rapaz tão bom ter se envolvido numa morte assim” do que a partida de D. Rosa desta para melhor. Aliás, a bem da verdade, pouco lamento havia nas pessoas.
O delegado não tinha um caso, porque a mulher tinha morrido de morte natural, mas D. Marianinha e D. Iracilda, incansáveis, batiam na tecla de que D. Rosa tinha sucumbido a um colóquio com o demônio. Na padaria, no salão de beleza, na escolas, nas calçadas, em sussurros ou em discursos curtos, as duas repetiam e repetiam as mesmas frases inflamadas: “O demônio sempre se apresenta como um homem bom, para depois corromper as almas”.
No início, Edugival se divertiu com a boataria, mas, ao longo de duas ou três semanas, percebeu que não lhe restava outra saída senão dar um basta nas insinuações daquelas duas fofoqueiras beatas, caso quisesse ainda ter alguma vida naquela cidade antes tão gentil. Primeiro, pensou em procurar um advogado. Mas isso seria a admissão indireta de uma culpa que não lhe pertencia. Depois, pensou em se fazer de vítima, aproveitando o fato de que tanto D. Iracilda quanto D. Marianinha eram tidas por quase todo o mundo como insuportáveis. Porém, não era de seu feitio se encolher com medo.
Naquela noite, deitou-se, mas não dormiu. Era novamente sábado, e tinha um mês que tudo acontecera. Seguiu insone noite adentro, pensando em como encerrar de vez a questão da morte de D. Rosa. Quando três ou quatro galos cantaram, um pouco antes das cinco da manhã, o rapaz ainda estava de olhos abertos, recostado numa pilha alta de travesseiros.
Tomou banho e fez uma barba exigente. Vestiu-se com elegância, colocou sapatos de amarrar, limpou e aparou as unhas e saiu sem café da manhã. Bastavam-lhe as palavras que trazia na pança.
No momento em que Padre Jonas adentrou a nave principal da igreja matriz para dar início à missa, não encontrou fixados nele, como de hábito, os olhares e saudações que o acompanhavam até o altar. Em vez disso, cochichavam e espiavam na ponta dos pés o primeiro banco do lado direito, onde se encontrava Edugival.
Padre Jonas tinha certeza de que era demais esperar que a presença do rapaz ali fosse pacífica, mas também não queria se alarmar demais, porque, afinal, estavam todos na Casa de Deus. No entanto, mal teve tempo de chegar ao altar e dar início à missa. Logo ao dizer ”Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, foi interrompido sem dó por Edugival.
— Padre, eu vim aqui hoje para conversar.
A indignação dos fiéis e os risos abafados das crianças permitiram que um quadro caótico e incontrolável de murmúrios se instalasse, até que uma voz se impôs sobre a audiência.
— Quietos! Quietos! — repreendeu Padre Jonas ao microfone, tentando reinstalar a ordem.
Vendo que só conseguiria sucesso parcial na empreitada, tomou de novo a palavra.
— Edu, meu filho, com que direito você interrompe a Santa Missa? E isso lá são modos de falar com o seu pastor? — começou o padre.
— Em primeiro lugar, vamos esclarecer as suas colocações. Edu, não, Edugival, porque eu hoje terei momentos, sim, de Edu, meu bom e paciente avô materno, e outros de Dorgival, o meu avô ranzinza, pai de meu pai.
Padre Jonas não conseguiu contê-lo mais.
— Em seundo lugar: estou interrompendo porque aqui me parece ser o único lugar onde eu encontro todo o mundo desta cidade reunido. E em terceiro, o senhor não é meu pastor, porque eu não sou ovelha.
A profusão de sons se propagou, mais uma vez, pela igreja, exigindo que o pulso firme de Padre Jonas novamente se manifestasse. Ele sabia que se perdesse a autoridade naquele momento, perderia também a ascendência sobre os seus fiéis.
— Então, já que é assim, retire-se, Senhor Edugival!
— Não, não me retiro. Aqui é a Casa de Deus, não é? E Deus não manda os seus filhos embora quando se aborrece com eles.
Padre Jonas percebeu, tarde demais, que havia caído na armadilha de letras e palavras que Edugival trazia no ventre. A audiência também percebeu, e isso só serviu para atiçar ainda mais os ânimos.
— Senhor Edugival, não vamos tratar Deus como um objeto das suas conveniências.
— Nem das suas...
— Eu sou o padre desta cidade!
— Já sei, já sei. O senhor é o representante do Papa, de acordo com a hierarquia da sua Igreja. E já que o Papa se diz o representante de Deus, se eu conversar com o senhor, estarei conversando com Deus, certo?
Padre Jonas já estava pronto para gritar “heresia!”, mas percebeu que se enredaria ainda mais na armadilha de palavras e optou por uma resposta evasiva.
— Indiretamente, indiretamente — respondeu, cauteloso.
— Indiretamente... pois que seja! — concordou Edugival.
— O que você deseja, Edugival?
— Discutr algumas passagens bíblicas.
— Como? Eu não vou discutir a Palavra Santa com você, meu rapaz! Mas que sacrilégio!
— Pois então é só a mim que a audiência vai ouvir? O senhor é quem sabe, padre.
Dizendo isso, virou-se para a plateia e perguntou:
— Os senhores acreditam mesmo que seria possível construir o mundo em sete dias? Ou melhor, em seis, porque no sétimo dia o Senhor descansou.
— Senhor Edugival, os sete dias da Criação não devem ser vistos como os dias a que estamos acostumados, com 24 horas. Cada um dos dias da criação é um período de tempo grande, como uma era.
— Hum...O padre reconsiderou sobre ficar em silêncio, hein? Então, diga lá, por que é que ninguém ensina isso direito no catecismo? Por que é que a Igreja não fala a verdade?
— Mas a Igreja fala a verdade! Esse é um dogma de fé!
— Entendo, entendo o seu ponto de vista. Quer dizer que foi Deus quem lhe contou isso?
— Indiretamente, indiretamente! — disse Padre Jonas, transtornado, tampando o rosto com as mãos e dando tempo a Edugival de lançar um outro questionamento.
— E Adão e Eva? Dois seres inteligentes, com capacidade de raciocínio, enganados por uma cobrinha sem vergonha! Ao invés de caírem no conto do vigário, caíram no conto da maçã.
— Senhor Edugival, eu sei que o senhor conhece a interpretação real da história de Adão e Eva — cortou o padre.
— Conheço, claro que conheço. Trata-se de sexo e não de maçãs, não é mesmo?
Diante do silêncio indignado do padre e da apreensão da audiência, Edugival continuou em escalada de perguntas:
— Padre Jonas, o senhor acredita em demônios?
— Claro que sim. E acredito principalmente no inferno, que é o lugar para onde o senhor vai direto, seu herege!
— Eu? Por quê?
— Porque está questionando as coisas de Deus!
— Não, não estou! Eu estou questionando é a mania da Igreja de disfarçar as verdades!
— É a mesma coisa, pecador!
— Não é não!
Nesse momento do bate-boca, um grito histérico fez eco pela igreja:
— Foi assim que esse demônio matou a Rosa! Essa ovelha desgarrada discute até matar!
Na segunda fileira, dedo em riste, D. Iracilda parecia, ela sim, uma caricatura do diabo. Ao seu lado, igualmente feroz, D. Marianinha concordava com a amiga. Padre Jonas, preocupado com o rumo que as coisas tinham tomado, descuidou-se do microfone, deixando Edugival se apossar do equipamento e lançar mais uma confusão.
— Levantar falso testemunho é coisa que a Igreja aceita, padre? — disse, alfinetando as duas senhoras.
Padre Jonas voltou-se para ele, furioso:
— Largue esse microfone, criatura sem freios na língua!
Edugival pareceu acalmar-se. Virou os olhos para o teto e assim ficou, por um tempo, calado, sem, no entanto, devolver o microfone ao padre. Ninguém ousava respirar, e o padre aproveitou a trégua para recompor-se.
— Eu acredito em Deus.
Padre Jonas ergueu de uma vez só as duas sobrancelhas; a audiência abriu a boca.
— Em Deus Todo-Poderoso, onipresente, onisciente, onipotente. E acredito no paraíso. Eu só não acredito é na Igreja e nessas historinhas que complicam a vida do ser humano.
— Então o senhor, assim como Lúcifer, que tinha inveja de Deus, quer uma Igreja à sua imagem e semelhança? — ironizou o padre.
— Não! Longe de mim pensar nisso! Já tem muita gente por aí querendo ser Deus! — devolveu Edugival.
Ignorando a provocação, Padre Jonas cruzou os braços e se virou de costas para o rapaz, como se fosse se afastar para a sacristia.
— Ora, não precisa sair, padre. Eu só queria mostrar ao senhor e aos cidadãos desta cidade como foi que as coisas se passaram realmente entre mim e D. Rosa. Era uma conversa igual a esta, sobre pontos de vista. Ela se irritou comigo, avançou para me dar uns tabefes e caiu dura no chão, enfartada. Apenas isso.
Padre Jonas cerrou os punhos, apertou os lábios e dirigiu-se a Edugival:
— Acabou? — perguntou, seco.
— Só um arremate, padre, bem ligeiro. Eu quero dizer ao senhor e aos fiéis que saio daqui, hoje, muito feliz, porque carrego comigo três certezas que este nosso encontro me trouxe: a primeira delas é a de que o senhor é um pecador, porque mente sobre o significado das coisas para as pessoas; a segunda é a de que D. Iracilda e D. Marianinha também são pecadoras, porque levantam falso testemunho, como fizeram comigo no caso da morte de D. Rosa, que Deus a tenha; e a maior delas, padre, é a de que sou eu o filho pródigo a quem Deus anda está esperando voltar para casa.
— Herege! Lunático! Inconsequente! Usando a palavra de Deus!
— Indiretamente, padre Jonas, indiretamente...
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