O mundo cabe em 196 livros
A escritora britânica Ann Morgan decidiu que durante um
ano leria uma obra de cada país do globo. Criou um site, escreveu sobre a
experiência e prepara-se para publicar o resultado em livro. Diz que falta traduzir
mais literatura lusófona.
Hélder Beja
Ann Morgan fez a lista de países que queria visitar,
ajustou planos de viagem para um ano, meteu o backpack às costas e partiu em
direcção à estante lá de casa. Sentou-se no sofá e pôs-se a ler.
Cada um viaja como quer e, no lugar de andar por aí nas
aventuras do mundo, esta escritora britânica decidiu chamar a si as histórias
dos 195 países reconhecidos pelas Nações Unidas, e ainda de Taiwan. “Descobri
que os meus hábitos de leitura eram muito anglocêntricos. A maioria dos livros
que lia eram de escritores britânicos e americanos, nunca lia traduções”, conta
a autora por email. “Decidi passar um ano a ler um livro de cada país do
mundo.”
A tarefa, pode imaginar-se, não foi fácil. Aos naturais
constrangimentos de tempo – era preciso ler cada livro em menos de dois dias
para atingir o objectivo de cumprir tudo num ano – houve também dificuldade em
conseguir encontrar títulos de vários países. As ajudas chegaram através das
redes sociais e do site criado pela autora (ayearofreadingtheworld.com), com
vários escritores, tradutores e leitores a facilitarem o processo.
As nações africanas de expressão portuguesa,
particularmente São Tomé e Príncipe, foram um grande desafio, já que “os países
africanos francófonos e lusófonos têm muito pouca literatura traduzida”. São
Tomé acabou por ser uma das experiências mais interessantes de todo o processo.
Confrontada com a ausência de qualquer livro de ficção traduzido para inglês, e
depois de muitas dicas de cibernautas, Ann Morgan acabou por comprar uma série
de exemplares de “A Casa do Pastor”, livro de contos de Olinda Beja publicado
pela Chiado Editora, e por reenviá-los para vários voluntários na Europa e nos
Estados Unidos da América que se ofereceram para fazer a tradução
propositadamente para este projecto, dando origem ao novo “The Shepherd’s
House”. “Foi uma das mais extraordinárias experiências colaborativas que alguma
vez tive o privilégio de testemunhar”, diz Morgan.
De Moçambique veio uma das boas surpresas desta
maratona de leitura. “Ualalapi”, romance de Ungulani Ba Ka Khosa, foi a escolha
pouco óbvia de Ann Morgan, num país com outros nomes grandes e traduzidos, como
Mia Couto e Paulina Chiziane. “Estava a preparar-me para ler ‘A Varanda do
Frangipani’, de Mia Couto, quando recebi um comentário no site em que me diziam
que devia ler ‘Niketche’, de Paulina Chiziane, porque é um cliché ler apenas
Mia Couto e ela precisa de mais atenção”, conta a autora.
Influenciada pela sugestão, e com vontade de fugir aos
lugares comuns, Morgan contactou a Alfama Books em busca da tradução inglesa do
livro de Chiziane. Só que a tradução nunca chegara a ser terminada, apesar de
existir até uma capa do pretenso livro – a editora faliu antes de publicá-lo.
Foi o editor da Alfama, Richard Barlett, quem acabou
por colocar esta aventureira dos livros no caminho de Ungulani Ba Ka Khosa,
dizendo-lhe que tinha uma tradução inédita de “Ualalapi”, livro que consta da
lista de 100 melhores obras africanas do século XX publicada pelo Modern
Library Board dos EUA. “Ter sido uma das poucas pessoas que algumas vez leu
este poderoso clássico em inglês foi um enorme privilégio. Deixou-me triste
pensar em tudo o que devemos estar a perder na nossa pequena bolha da língua
inglesa e fiquei zangada por a literatura moçambicana, que existe numa língua
tão comummente falada como o português, não ser mais traduzida e lida.”
Portugal
clássico
Quando chegou a hora de ler um livro português, Ann
Morgan esteve tentada a escolher um dos romances do único Nobel da Literatura
das nossas letras, José Saramago, mas, mais uma vez, os conselhos dos leitores
e amigos que foram acompanhando o seu projecto conduziram-na a outras paragens
e a uma das obras mais curiosas de Eça de Queiroz: “O Mandarim”. “Este livro
foi-me emprestado por uma mulher portuguesa que trabalhava no Guardian, onde eu
também estava nessa altura. Ela soube do que eu estava a fazer e deu-me o
livro. Foi um dos primeiros livros que alguém me deu para este projecto e
fiquei muito sensibilizada com esse gesto de alguém que não conhecia. Foi por
isso que decidi lê-lo.”
Ao conhecer as desventuras da personagem Teodoro, que
viaja até à China, Morgan deu de caras com um autor do século XIX que, no
entanto, “tem uma frescura na linguagem que a faz parecer muito mais recente”.
A obra lida pela escritora britânica foi na verdade
“The Mandarin and Other Stories”, com outros contos de Eça a juntarem-se ao
texto principal. “O Eça é divertido e experimental, e delicia ao meter-se com
os leitores em certas ocasiões, desafiando-os do mesmo modo que desafia as suas
personagens”, continua Ann Morgan, que espera pegar noutra obra do autor de “Os
Maias”. “Provavelmente em 2020, quando der conta do acumular de todas as outras
coisas maravilhosas em que fui tropeçando durante esta tentativa de ler o
mundo”, brinca.
Dos outros países lusófonos, o projecto Reading the
World levou a autora britânica a títulos como “A Casa dos Budas Ditosos”, do
brasileiro João Ubaldo Ribeiro; “O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva
Araújo”, do cabo-verdiano Germano Almeida; “Unidade e Luta”, do guineense
Amílcar Cabra; “O Assobiador”, do angolano Ondjaki; e “Crónica de uma travessia
– A época do ai-dik-funam”, do timorense Luís Cardoso.
Foi aqui, no livro de Cardoso, que Ann Morgan encontrou
aquilo que descreve como um dos melhores cruzamentos entre realidade e ficção.
“The Crossing”, título da obra em inglês publicada pela Granta, é uma espécie
de auto-biografia em que o autor hoje a viver em Portugal recorda a sua
infância e adolescência. Ao mesmo tempo que torna a narrativa o mais pessoal
possível, Luís Cardoso vai também pintando um fresco do passado recente
muitíssimo conturbado de Timor-Leste. “Este livro é tanto sobre esquecer como
sobre recordar. Enquanto o pai de Cardoso, traumatizado e exilado, molda a
narrativa, o próprio Cardoso tenta reconciliar-se com as versões parciais de
acontecimentos que encontra através das próprias memórias fragmentárias que tem
da sua terra natal”, explica Ann Morgan. Para a autora, “The Crossing” é um
livro “tocante, lírico e às vezes divertido sobre a busca de identidade numa
terra que pôde apenas fugazmente ser chamada sua”. Cardoso consegue criar “uma
obra de arte convincente a partir de um caleidoscópio de mudanças e de alianças
pessoais e políticas”.
A
grande China
Pensar em encontrar um livro das ilhas Comoro ou de
Madagáscar que seja interessante e esteja disponível em inglês não pode ser uma
tarefa fácil. E a certa altura percebe-se que Ann Morgan deixou cair o primeiro
critério, da qualidade, para simplesmente conseguir encontrar um título que lhe
permitisse seguir em frente.
No caso de nações como o Brunei e o Bahrain, o caso foi
diferente: Morgan confrontou-se com histórias de escritores que, não tendo o
inglês como primeira língua, decidem escrever em inglês para chegarem a maiores
audiências. As insuficiências gramaticais e vocabulares encontradas em títuilos
como “QuixotiQ”, de Ali Al Saeed, fizeram Morgan “valorizar ainda mais o papel
das traduções”, para que escritores não se sintam compelidos a usar uma língua
que não lhes é natural.
Se houve casos de escassez, houve naturalmente vários
outros de fartura de opções, como por exemplo a China. “O meu conhecimento
sobre literatura chinesa era praticamente inexistente, e fiquei muito feliz
quando a tradutora Nicky Harman se ofereceu para me guiar por algumas opções”,
prossegue Morgan. Depois de muita conversa e sugestões, a leitora escolheu
“Banished!”, de Han Dong, um romance sobre uma família, a família Tao, banida
da cidade de Nanjing e obrigada a recolher-se na aldeia de Sanyu no final dos
anos 1960.
A trama de “Banished!” acompanha todas as mudanças na
vida de uma família enredada nas teias do maoismo e “o resultado é uma
narrativa comovente sobre o poder dos seres humanos para assumirem as suas identidades”,
mesmo nas circunstâncias mais sombrias. “Há países como a Índia e a China onde
o desafio é seleccionar apenas um livro quando há tantas histórias maravilhosas
por onde escolher”, conclui Morgan.
A
vez de escrever
Ann Morgan não consegue eleger um livro ou um autor
entre os muitos que leu, da América Latina ao Sudeste Asiático, nem mesmo entre
os títulos portugueses que seleccionou: “É impossível responder a isso. Direi
apenas que há histórias extraordinárias e excepcionais, que mudaram a minha
forma de pensar em muitos aspectos”.
Depois de um ano em que o mais importante foram a
disciplina e a capacidade de dormir poucas horas para continuar a ler, a autora
está agora a trabalhar no livro que reunirá todos os textos que escreveu sobre
esta experiência e que será publicado em 2015. “Será uma obra sobre a minha
busca e sobre explorar a ideia de leitura e de cultura mundial, e no que isso
pode ensinar-nos sobre a vida e as pessoas que nos rodeiam.”
O próximo projecto de Ann Morgan mantém o espírito de
partilha de conhecimento e de apelo a outras pessoas para que participem
daquilo que está a fazer – tudo porque “muitos cérebros são melhores que um”.
Chama-se “If Women Ruled” e pretende ser um retrato de grupos de mulheres à
volta do globo, que ocupem diferentes posições e tenham diferentes papéis nas
sociedades em que estão inseridas. O site já existe (ifwomenruled.com) e o lema
também: “What if History was Herstory?”.
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