Registro
Havia um cartório no segundo andar da maternidade na
qual meu filho nasceu. Meia dúzia de pais com senhas na mão e um típico
funcionário com carimbo, repetindo exaustivamente as mesmas sete instrutivas
frases a cada novo pai que assumia a cadeira.
Quando ele me entregou a certidão para que conferisse,
um arrepio me escalou a espinha. Demorei-me um pouco olhando o documento,
olhando a secção dos avós paternos e maternos. Lendo e relendo, como que diante
de um enigma. “Algum problema?”, ele perguntou. Não havia nada de errado, não
oficialmente. “Tudo certo”, eu disse. Não sabia que esse tipo de informação
constava na certidão – e de fato nunca compreendi o sentido concreto daqueles
termos: avós.
Exceto por minha avó materna, que morreu tem uns quatro
anos, não sei os nomes dos meus avós de cabeça. Parece descuido ou frieza da
minha parte, mas a verdade é que isso (avós) nunca teve importância na minha
vida. Não tive a oportunidade de conhecê-los. E não dá pra sentir falta de
alguém que nunca esteve por perto. É natural.
Essas coisas eu pensei do lado de fora da maternidade,
fumando um cigarro. Pensava isso na primeira camada de pensamento (nunca tive
contato com meus avós, é natural não saber o nome) – mas uma corrente paralela
de pensamento, mais silenciosa, mais abaixo, como as correntes ao fundo dos
rios, ocupava-se de vasculhar cada gaveta neural, milímetro a milímetro, fio a
fio, à procura de um nome ou apelido que fosse.
E não havia nada lá.
Uma coisa desde sempre me foi clara: para o bem ou para
o mal, a ausência promoveu um sentimento de não-identificação com qualquer
linhagem anterior – como se não existisse. Um desprendimento quase que total da
noção de ancestralidade. É como se o mundo (meu mundo, família) tivesse
começado ali mesmo, comigo. Isso agravado pelo fato de ter nascido em um estado
e ter crescido em outro. Uma liberdade sem o peso das pressões e determinações
impostas por uma linhagem qualquer, mas também uma liberdade desamparada, sem
raízes, um espírito estrangeiro, desterrado.
Antes de voltar para o quarto, passei no refeitório,
onde senhoras e senhores de branco esfregavam o jaleco à beira das saladas e do
arroz soltando fumaça. Enquanto pedia um café, pensei que o investimento
robusto em álcool em gel era inútil diante daquele hábito bizarro. Nada faz
sentido.
Pelo menos o café, que vinha direto da máquina, parecia
imune. Quando fui pagar, optei por usar o VR. Estava cheio. Mas errei a senha.
Uma senha que uso exaustivamente há oito meses, todos dias. Errei três vezes.
Desapareceu completamente da minha cabeça, como se nunca houvesse existido. E
não consegui me lembrar até hoje.
MARCOS VINÍCIUS ALMEIDA-
Nasci em 1982, em Taboão da Serra, na Grande SP. Mas vivi desde sempre
em Luminárias-MG, com breves passagens por São João del Rei-MG e Porto
Alegre-RS. Atualmente, moro em São Paulo. Publiquei alguns contos em
antologias, sites e revistas: Cult, Suplemento Literário de MG, Germina,
Cronópios, Revista Bula, entre outros.Contato-mvalmeida.7@gmail.com
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