FIM
A morte é uma piada – embora seja difícil comprovar o
que a faz engraçada. No entrecruzamento entre o grotesco que caracteriza a
existência e o sossego eterno, Átropos, a mais cruel das três Moiras, corta o
fio da vida e transforma o humano em matéria em decomposição. Comida para os
vermes.
Sobram (quando sobram) alguns ossos, um punhado de
cinzas (se houver incineração) e quantidades industriais de lembranças. Esse
último item constitui o combustível que impulsiona o romance Fim, escrito por
Fernanda Torres, e que – descontados vários elementos básicos como tempo
histórico, competência literária e talento individual – elabora um diálogo
divertido com o memento mori celebrado em histórias assimétricas como Memórias
Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis, 1881), A Morte e a Morte de Quincas
Berro d’Água (Jorge Amado, 1961) e o conto La Petite Mort (Ruy Castro, incluído
na coletânea Meu Querido Canalha, 2004). Em todos, há várias cenas em que as
carpideiras vertem várias Cataratas do Iguaçu em forma de lágrimas, manifestam
o incontido desespero e participam de concorridos enterros. O leitor, ao longe,
salvo de participar ativamente dessa pantomima, se emociona e se diverte em
doses proporcionais à própria sensibilidade e ao talento narrativo de quem emoldura
o nome na capa do livro.
A história que (des)uniu cinco amigos – nas
circunstâncias em que o cheiro da morte atinge a sala de visitas (metáfora
empregada por Tolstói, com outras palavras, em A Morte de Ivan Ilitch) –
resulta em diversas situações divertidas e na revelação de alguns segredos
familiares. Nada muito surpreendente, apenas a comprovação que as mulheres são
vítimas da prepotência masculina e que todos os homens nascem e morrem
canalhas.
Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro atravessaram a
vida carregando esposas, amantes, filhos, genros e noras, netos, sobrinhos e
agregados. Uma infinidade de personagens planos que, salvo poucas exceções,
parecem vasos de plantas decorando o ambiente em que se movimentam os
protagonistas. Surpreendentemente, isso não se revela uma dificuldade
narrativa. Toda vez que o texto ameaça perder a força, o narrador onisciente
inicia um novo capítulo e outro punhado de personagens é acrescentado ao
andamento narrativo. A nova situação (embora seja quase idêntica a anterior)
permite retornar ao passado, tempo narrativo de onde extrai algumas novidades
e, imediatamente, sem o mínimo escrúpulo, prossegue o relato.
Esse truque está atrelado a outro: o deslocamento do
narrador. Enquanto os personagens secundários são narrados pela distância
característica da terceira pessoa, todos os protagonistas recebem o privilégio
de descrever, em primeira pessoa, o momento derradeiro. Parece um golpe de
gênio, mas..., as vozes narrativas são quase todas iguais. O tom pasteurizado
dos personagens cariocas, oriundos de estrato pequeno-burguês, não apresenta
aquele plus necessário para demarcar a diferença. O que salva o texto do
naufrágio completo são as idiossincrasias, os aspectos externo à técnica
narrativa, de cada um dos cinco protagonistas – embora essas particularidades
não evitem, no início de cada capítulo, a sensação de déjà vu.
O que realmente estabelece a singularidade são as
pequenas indeterminações, aqueles elementos que contribuem para a tessitura da
substância narrativa. As dificuldades de Irene e Rita, ex-esposa e filha,
depois da morte de Álvaro mostram-se, simultaneamente, hilárias e trágicas. As
lésbicas que Silvio adotou sexualmente revelam a força telúrica que está se
perdendo no mundo do politicamente correto. As carências afetivas de Ribeiro
(apaixonado por Ruth, esposa de Ciro) são canalizadas no sobrinho e nas partidas
de vôlei na praia. O ciúme, que evoluiu para a loucura, de Ruth repete a cena
em que homens e mulheres se maltratam diariamente. Maria Clara (como se fosse o
Anjo da Anunciação) contribui para a realização do último desejo de Ciro.
Depois, fantasiada de viúva negra, comparece ao enterro. Por fim, há o padre
Graça, um desgraçado, incapaz de perceber que a vida se opõe frontalmente à
morte e que, como sempre, o demônio se esconde nos detalhes.
Fim é um romance mediano que aposta no humor macabro.
Não é ruim. Apenas não é bom o suficiente para deixar de ser entretenimento e
ser considerado como literatura de qualidade.
TRECHO ESCOLHIDO
Ganhei de meu pai, de Natal, a coleção completa do
Sítio do Picapau Amarelo. Eu tinha doze anos. Ela sobreviveu e eu dei para a
Rita, achando que estava apresentando o céu para ela, mas a Rita amarrou a
tromba porque queria uma Barbie. Tentei ensinar matemática com o Visconde,
história com Dona Benta, gramática com a Emília, mas ela criou aversão ao
Sítio, reclamava que não tinha figura. A Rita cresceu ignorante e fútil. Na
adolescência, torci muito para ela não engordar, porque, com o QI da minha
filha, o melhor que podia acontecer era ela arranjar um bom casamento.
Arranjou um médio, com um radiologista de Uberaba. O
pai tinha uma clínica de imagem e o filho entrou para o ramo. Eles se
conheceram numas férias dela em Ouro Preto. Meu genro é uma besta quadrada, do
tipo que afirma que todo mal provém do stress. Sou acometido de um sono
hipnótico toda vez que converso com ele. Pode ser em pé, sentado, no carro,
numa festa horrorosa, dessas de fim de ano. O Felipinho e o Marcelinho
relincham alto para me acordar e cantam com voz de débil mental que o vovô está
gagá. Mal sabem eles que só estou me protegendo da chatice do ignóbil do pai
deles. Pai esse que lhes deu metade dos genes medíocres, sendo que a outra
metade quem deu foi a mãe deles, que herdou de mim os piores genes, aquele que
não gostam de Monteiro Lobato. Os galhos estão podres, Felipinho e Marcelinho.
Os seus filhos vão ser gordinhos que nem vocês, vão apanhar na escola, vão ser
filhinhos de mamãe, riam bem alto, vocês nem sabem o que vem por aí: acne, pau
pequeno, calvície, pressão alta, colesterol, tosse, mau hálito, pelo no ouvido,
falta de ar, incontinência urinária, derrame, eu vou assistir de camarote.
Qualquer garoto de rua tem uma genética melhor do que a de vocês. Agora vão pro
quarto porque eu quero voltar a cochilar ouvindo a ladainha do seu pai.
A Rita me visita no Rio duas vezes por ano, quer que eu
mude para Uberaba, imagina. Como se fosse resistir a Uberaba, e ela a mim, e eu
aos filhos dela. Melhor o asilo, muito melhor o asilo; em Maricá. Quando ela
vem, procuro ser gentil, o idiota do marido sempre a tiracolo. Eu marco deles
virem à noite, na hora da insônia, para ver se durmo no embalo da cantilena.
Poderoso sonífero, o papo do meu genro.
Raul
J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008),
publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no
Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional,
segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias
como se fossem uvas”.
Todos os
direitos autorais reservados ao autor.
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