NU, DE BOTAS
Alguns necrófilos da Teoria da Literatura estão
anunciando que a crônica não vale o papel em que é impressa. Argumentam que se
trata de um gênero, perdão, de um subgênero literário sem muitas qualidades
literárias, além de não exigir esforço intelectual (seja para escrever, seja
para ler). Enfim, não passa de texto descartável, mera reunião de alguns
trechos engraçadinhos com – se o leitor tiver sorte, normalmente não tem – meia
dúzia de frases pseudofilosóficas.
Todo esse esforço de desqualificar o trabalho alheio
resulta em imensa bobagem. Descontadas algumas mutações básicas, a crônica vai
sobreviver aos seus inimigos. Nu, de Botas, de Antonio Prata, por exemplo,
provavelmente terá mais "tempo de vida" do que alguns livros
considerados “de qualidade” (seja lá o que isso for!).
Ao apostar na recuperação ficcional de algumas
histórias de sua infância, Antonio Prata organizou uma espécie de livro de
memórias precoce (para quem faz restrição às crônicas, há um grande perigo: a
extensão dessas lembranças pode resultar em outros volumes, abordando a
adolescência, a vida adulta e, Deus nos livre, a velhice).
Nu, de Botas consiste em duas dúzias de textos (que
podem ser lidos aleatoriamente, sem preocupação com a ordem sequencial),
escritos em uma linguagem que se aproxima do coloquial. Ignorando as firulas
estilísticas e as frases grandiloquentes, as crônicas escritas pelo Antonio
Prata produzem grande empatia. O narrador, em primeira pessoa, parece conversar
com o leitor. Como um amigo, que nos conta uma série de aventuras engraçadas.
Da primeira até a última história, com os olhos voltados para a década de 70 do
século passado, ele seleciona fragmentos da educação sentimental de um menino
branco, de classe média alta, bom nível intelectual, e que, salvo a separação
dos pais, não sofreu grandes traumas. Abusando das descrições, recheando o
texto com detalhes e elementos de época (principalmente marcas comerciais),
estabelece a verossimilhança. Apostando no fator identificador isso poderia ter
acontecido com você, transforma os fatos mais ridículos – normalmente
protagonizados por ele mesmo – em narrativas interessantes.
Sem permitir que a
seriedade entre em campo, costura o texto com grandes doses de humor. Poucos
leitores conseguem resistir a esse truque narrativo.
Ao mesmo tempo, Nu, de Botas espelha a última novidade
da técnica ficcional. Sem o mínimo constrangimento, Antonio Prata transformou
experiências pessoais em algo que, na falta de melhor definição, pode ser chamado
de autoficção. Mas, ao contrário de alguns seguidores dessa linha
a-pós-o-moderno, que adoram transitar pelo hibridismo narrativo (parte
biografia, parte ficção), ele faz questão de fixar o tempo e o espaço narrativo
em algo muito próximo do “real”. E, para surpresa geral, executa essa tarefa
com razoável competência.
De forma complementar, aquele que domina, de forma
onisciente, a ordem dos fatos a serem transmitidos para o leitor, eliminou (na
medida do possível) quaisquer registros de crises. Nos momentos decisivos,
quando o narrador – com os dois pés fixos no presente – poderia propor algum
elemento de estranhamento, a estratégia de fuga é acionada com rapidez
impressionante. Consciente de que trabalha com o passado, apenas com o passado,
apela para a ingenuidade infantil (Além do mais, por que eles mentiriam pra
gente?) e, por essa rota de fuga, escapa do conflito. Mesmo em situações que
(nas mãos de outro cronista) poderiam render “algo mais”, como a cena de sexo
oral (Blowing in the Wind), utiliza o nonsense como linha de conduta narrativa.
O efeito obtido com esse artifício não permite escolha ao leitor: muitas
gargalhadas.
No mesmo tom de redoma de vidro, as tensões econômicas
de um país com problemas políticos (ditadura militar) são diluídas nos
comentários a respeito da troca de brinquedos. O playmobil é substituído por
minimotos e minicarros – indicando a ascensão da classe média ao paraíso de
consumo do Primeiro Mundo. Como as crianças não podem fazer nada a respeito,
exceto observar as transformações do mundo, o narrador mergulha nos detalhes e
exagera no efeito cênico. A baixa extração intelectual (quadrinhos e revistas
pornográficas) recebe sua compensação em Shakespeare. Para espantar o tédio,
durante uma temporada de férias na praia, a mãe e o padrasto contam aos filhos
a história de Romeu e Julieta. A amputação da perna de um idoso se transforma
em grande espetáculo. Igualmente sensacional é o assalto em uma casa vizinha
(embora nesse caso, ao retratar a violência urbana, o narrador deixe escapar um
surpreendente – e raro – registro a respeito da violência policial).
Nu, de Botas é um bom livro de crônicas – e muito divertido. Isso não pode ser
negado. Evidentemente, todas as restrições acima refletem o olhar de um leitor,
de um leitor específico, que adora fuçar o texto do Outro para encontrar (ou
inventar) defeitos. Outros leitores provavelmente abordarão as muitas
qualidades do livro. O que é necessário destacar é que, quando confrontados,
esses dois tipos de leitores – com projetos lúdicos e intelectuais divergentes
– concordarão que a imensa criatividade de Antonio Prata traduz um aviso
enfático para os descrentes: a crônica tem o fôlego de atleta queniano.
Raul
J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008),
publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no
Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional,
segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias
como se fossem uvas”.
Todos os
direitos autorais reservados ao autor.
Assinar:
Postar comentários
(
Atom
)
Nenhum comentário
Postar um comentário