Os anos em que Virginia Woolf esteve à mercê das loucuras de Hitler. [Renan Pereira]
Quando se fala em Virginia Woolf, logo as pessoas pensam numa pessoa depressiva, triste e que cometeu suicídio pondo um ponto final em sua vida. Ponto final que cobriu como um véu cinza toda a trajetória da mulher que lutou a favor da liberdade, da arte e do pacifismo. Mas este ato marcante e cruel aos nossos olhos que desde sempre foram treinados a olhar para a vida com apego e paixão, não justifica e nem determina a vida de Virginia Woolf. Já que ela mesma afirmava com frequência em seu diário: “Eu sou absolutamente feliz”.
As Ondas: Uma flor de seis faces
A cada novo livro Virginia passava por um processo de sofrimento e tortura, o que não foi diferente com As Ondas. Buscando superar os estilos já consagrados de Mrs. Dalloway e Ao Farol, a escritora entrou num intenso processo de criação. Ela acreditava que ao escrever, deveria mergulhar a fundo em seu subconsciente, encontrando ali respostas e verdades universais.
Em Mrs. Dalloway e Ao Farol, a escritora projetou toda a sua ira no que chamou de “O Anjo da Casa”. Este Anjo no qual esses livros vieram para destruir representava a figura e o papel da mulher na sociedade vitoriana inglesa. Virginia cresceu num mundo onde as mulheres eram educadas para servirem e obedecerem aos homens. Todo o universo feminino girava em torno do patriarcalismo, e isso deixou fortes feridas na escritora. Ela sentia-se completamente atacada com as desigualdades de gênero (termo que não existia na época). Dizia que as mulheres e o mundo eram escravos dos homens e que isso era completamente injusto. Então escreveu Ao Farol e Mrs. Dalloway no intuito de usar suas ideias subversivas para dar voz às mulheres que já não mais pretendiam se submeter ao domínio dos homens.
No período da viagem à Alemanha, Virginia estava escrevendo Os Anos. Os Anos foi planejado para ser um romance social, uma espécie de panfleto que denuncia-se as desigualdades de gênero e também convoca-se as pessoas a resistirem à violência da guerra. Com sua postura pacifista, Virginia acreditava que as pessoas, principalmente as mulheres, não deviam ceder à loucura coletiva, que reagir com violência aos ataques e investidas de Hitler era um erro. Que mesmo sendo atacados, os ingleses deveriam mostrar-se indiferentes. Fingir que nada estava acontecendo.
Essa ideologia pacifista se contrapunha a de muitos intelectuais da época, e até mesmo a de seu marido Leonard, que acreditava que só vencendo a guerra contra a Alemanha eles conseguiriam manter o que ainda restava da civilização. Mesmo assim, Virginia não desistiu. Trabalhou duro no seu romance consciente de que a ideia original (de escrever um romance panfleto) não poderia ser concluída. Durante este período, entrou em muitas crises nervosas, devido ao extremo esforço que fez para gerir uma história sobre as várias gerações de uma família inglesa. “Exprimiu o seu cérebro” para mostrar em Os Anos, o quão sufocante pode ser a vida cotidiana. O quão as mulheres foram e ainda eram reprimidas pelo padrão de vida inglês. E também abordar a política como algo a ser vivido nas relações cotidianas, e não simplesmente nos discursos supérfluos e vazios dos líderes que ela disse “que mais pareciam crianças brincando do que adultos decidindo o destino de uma nação”.
Tão duro foi o trabalho de composição de Os Anos que Virginia chegou a cogitar que o livro iria para o lixo. Classificou-o como “livro maldito”. Disse a sua amiga Ethel que era duro o trabalho de olhar para um capítulo e ter que remover duzentas páginas. E o sofrimento não acabou com a publicação da obra. O medo da crítica a colocou na cama diversas vezes. Sua euforia era tanta, que precisou ficar algumas semanas em repouso em Rodmell. Mas quando Leonard leu Os Anos sentiu-se aliviado. Disse a ela que muitos escritores teriam orgulho de publicar um livro como aquele, que era uma verdadeira obra de arte.
Porem a declaração de Leonard não foi o suficiente para acalmá-la. Virginia andava exausta e inquieta pela opinião dos críticos. Temia fazer papel de tola perante a classe literária. No entanto, seus nervos foram acalmando quando a primeiras críticas e resenhas nos jornais foram publicadas. O livro foi considerado quase por unanimidade: uma verdadeira obra prima. Alguns críticos achavam que era o livro mais comovente escrito por Virginia até então. Pouco tempo depois, conquistou o primeiro lugar entre os livros mais vendidos em Nova York, ao lado de E o vento levou, de Margaret Mitchell.
Entretanto o sucesso do livro não foi o suficiente para reanimar Virginia. Ela sentia que ainda existia algo para ser dito. Então começou a escrever Three Guineas, o panfleto que seria praticamente uma continuação de Os Anos. Em Three Guineas, fez denúncias e argumentou contra o nacionalismo, o patriarcalismo e também a favor do pacifismo. Persistiu em mostrar casos de desigualdades contra as mulheres, como numa ocasião em que não a escolherem para preencher um cargo em uma biblioteca apenas por ela ser do sexo feminino. Também foi a fundo em outras denúncias. E por isso achou que a partir daí seria ignorada pela mídia e intelectuais da época por acatar em cheio raízes muito sólidas da sociedade Inglesa. O que foi um equívoco, pois, Three Guineas foi um sucesso.
Rumo à guerra
Leonard e Virginia em idade mais avançada. |
Um exemplo da sensibilidade da escritora em relação às mudanças sociais pode ser notado com a publicação de As Ondas, em 1932. Durante o período de produção do livro, a Inglaterra passava por fortes dificuldades devido à grande crise econômica de 1929, e os lideres fascistas e nazistas já demonstravam poder e ascensão na Europa. Virginia, que não acompanhava a fundo essas mudanças, pode captar na atmosfera grandes forças destrutivas do ser humano que estavam emergindo, traduzindo-as inconscientemente numa passagem de As Ondas. As passagens se dão no momento em que a personagem Rhoda em um monólogo interior, diz sentir, “uma energia feroz e incontrolável, alguma monstruosa forma de vida que emerge erguendo sua crista escura do mar”. E também o personagem Louis que diz “ver aves selvagens, e impulsos mais selvagens que as aves selvagens jorram do meu coração”…
Mas desta vez conflitos demostravam ser piores. Enquanto trabalhava no jardim, Virginia via o tempo todo no chão as sombras dos aviões sobrevoando o céu. Ela escreveu em seu diário que esperava aflita o momento em que fossem jogadas bombas de gazes venenosas. E para aumentar sua infelicidade, seu sobrinho Julian, filho de sua irmã Vanessa na qual era tão próxima e ligada, morrera na guerra civil espanhola, atingido por um estilhaço de bomba. Virginia escreveu em seu diário que “achava que nunca mais seria feliz novamente”.
Para fugir da loucura coletiva e distrair a cabeça, ela começou a escrever a biografia do seu falecido amigo Roger Fry. Roger e Vanessa, irmã de Virginia, tinham sido namorados e mesmo depois da separação mantiveram a amizade e os laços. Virginia planejava dar a biografia de presente a sua irmã, que ainda sofria pela morte do filho. Como todo livro, a biografia de Roger Fry, que foi um dos mais importantes críticos de arte do século xx, acabou deixando Virginia exausta.
A Guerra chega a Rodmell
Aconselhados pelas autoridades, Virginia e Leonard mudaram-se de Londres para Rodmell. Neste meio tempo Virginia concluiu a biografia de Fry. Vanessa disse a irmã que era o retrato fiel de Roger. As resenhas nos jornais também foram favoráveis, com exceção de alguns que diziam que Roger Fry, Virginia Woolf e os outros intelectuais e artistas do grupo Bloomsbury eram em parte culpados pelo terror da guerra, pois passaram a vida se preocupando com angustias e prazeres individuais e elitistas, ao invés de alertarem a massa contra os perigos do totalitarismo. Virginia contra-argumentou dizendo que a arte é capaz de tornar o ser humano mais consciente, e que isso era uma boa maneira para alertar as pessoas.
No entanto, as críticas não tinham mais o sentido de outrora. Pois os seus valores e pesos haviam sido dissipados pelos bombardeios. E a vida no campo estava começando a deprimir a escritora. Em 10 de setembro de 1940, os Woolfs foram passear em Londres e encontraram os vidros de sua casa destruídos pelo impacto de uma bomba que explodira caíra numa casa vizinha. Quiseram entrar, mas a casa estava isolada, pois uma bomba de efeito retardado havia caído em seu jardim, e podia explodir a qualquer momento. Eles deram meia volta e seguiram para Rodmell. No caminho, vendo o sofrimento de um vilarejo pobre que também havia sido atacado pelos aviões alemães Virginia diz a Leonard “Nós, pelo menos, estivemos na Itália e lemos Shakespeare. Eles não”. No dia seguinte a bomba explodiu, deixando a casa de Virginia em Londres completamente destruída. Semelhante à casa do livro Ao Farol, na parte O Tempo Passa.
Sem a sua casa em Londres e a sua antiga rotina, Virginia começou a dar asas a depressão. Embora nesta época tenha escrito Entres Atos, um romance que celebra a vida no campo, ela detestava viver em Rodmell. O baixo grau de instrução de seus vizinhos a entediava. Ela dizia que eles abusavam dela e de Leonard. Que eram vampiros, sempre buscando sugar suas ideias. E sua saúde física começou a piorar, pois, devido a guerra, havia falta de alimentos. Ela começou a emagrecer cada dia mais.
No dia 27 de março de 1941, Leonard a convenceu a ir numa consulta médica. Mas chegando lá, Virginia se esquivava das perguntas, dizendo que não precisava de ajuda. A médica que estava atendendo era uma amiga próxima, que nos últimos meses mandava leite e geleia de sua fazenda para os Woolfs que estavam abandonados. Em seu diário, a médica Octavia escreveu o quão doloroso foi aquele momento, que não sabia se poderia realmente ajudar Virginia.
Virginia estava convencida de que aquele era o seu fim. Temia ser mandada para uma clínica, mas temia ainda mais a sua loucura. As vozes que em 1913 perturbaram a sua cabeça, regressaram com força total. Sua doença estava no auge. E os impulsos suicidas também. Escrevera duas cartas, uma a Vanessa, e a outra a Leonard. Mas não tivera coragem de entregar. Ainda lutava para sobreviver. Era uma pessoa que amava a vida. Um pouco antes, Leonard e ela haviam combinado de se suicidarem juntos caso Hitler invadisse a Inglaterra, porém Virginia desistiu, afirmando que queria viver mais dez anos escrevendo. Que podia ser feliz por mais dez anos.
Infelizmente isto não aconteceu. Os acontecimentos a enfraqueceram e a sua doença estava mais forte do que nunca. No dia seguinte a consulta, Virginia tentou se concentrar em alguns afazeres domésticos, conversou com Leonard de manhã e escreveu uma breve carta sobre a sua prancheta. Vestiu um casaco e pegou sua bengala. Caminhou sobre a lama, apanhando pedras e enfiando-as no bolso, e por fim entrou no rio segurando a sua bengala. Leonard encontrou duas cartas em cima da lareira deixadas por Virginia. Abriu a endereçada para ele e em seguida correu para procurá-la. Encontrou pegadas na lama que iam em direção ao rio Ouse. A bengala de Virginia estava boiando próxima a margem. O pior já tinha acontecido.
Considerações finais
É provável que se a guerra não estivesse ocorrido Virginia não teria se suicidado. Os ataques aéreos e a atmosfera conturbada potencializaram os medos da escritora. Ela assimilava a sua primeira crise nervosa em 1913 com os acontecimentos da primeira grande guerra, e temia que agora voltasse a se sentir como antes, já que os acontecimentos eram semelhantes. Leonard concluiu junto a Octavia (que se sentia culpada) que a doença de Virginia fora reativada pelos conflitos políticos. Que ela sofrera demais devido as mudanças. E que o ato de sua morte era em parte consequência do caos instaurado na Europa naquele tempo. Virginia foi mais uma vitima do terror pregado pelos fascistas, nazistas e principalmente pela loucura de um um “babuíno” chamado Hitler.
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Virginia Woolf foi uma pessoa que sentia um enorme prazer em coisas comum. Amava contemplar a natureza e possuía uma sensibilidade invejável. Fã de Lewis Carroll, planejou uma festa a fantasia com o tema Alice no país das maravilhas na qual foi vestida de lebre da colina. Seus amigos foram em grande parte pessoas importantes do séc. XX, como a escritora Katherine Mansfield e o criador da psicanalise, Sigmund Freud. E, durante boa parte da sua vida sentiu-se como ela mesma costumava dizer: Absolutamente, feliz. Referência: Virginia Woolf: A medida da Vida, de Herbert Marder (Cosac Naify, 2011).
Renan Pereira -É escritor, poeta e um futuro jornalista.
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