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Retrato de Bandeira [José Castello]

Retrato de Bandeira


Recebo um lindo livro, em edição de luxo, dedicado às relações do poeta Manuel Bandeira com a cidade do Rio de Janeiro. Chama-se "A cidade por Bandeira" (editora Batel). A edição e o projeto gráfico são de Gueko Hiller e as impressionantes fotografias assinadas pelo jovem fotógrafo francês Benoît Fournier (1981).

O laço arbitrário, mas impactante, entre as fotos e os versos de Bandeira nos transmite a sensação de que o poeta usou o Rio de Janeiro como seu caderno de desenho. Que escreveu sua poesia diretamente nas paredes, ruas e calçadas da cidade, de tal modo elas se enlaçam e se completam.

O que mais me impressiona no livro é a dissonância entre os versos e as fotografias, que ao fim nos oferecem um inesperado retrato do próprio Bandeira. Não há nenhuma intenção de "ilustração". As imagens não são um adorno, um complemento. Ao contrário, elas dialogam de igual para igual com o poeta, desviam suas palavras, retorcem-nas, lançando-as em outros caminhos. Com isso, é também a imagem do poeta que se redesenha. Embora eu trabalhe apenas com palavras, sempre admirei a autonomia absoluta das imagens em relação a elas. Autonomia que não significa ausência de diálogo, ao contrário, significa possibilidade de diálogo verdadeiro. Soma, que nos leva a um terceiro lugar. 

"Não te doas de meu silêncio/ Estou cansado de todas as palavras", dizem versos do poeta, dialogando, por exemplo, com a fotografia de um surfista, de quem só se vê o dorso, em meio ao mar do Rio de Janeiro. Silêncio, solidão, autonomia, nomadismo foram coisas que o poeta prezou muito e com as quais trabalhou todo o tempo. Um poeta não trabalha só com palavras, mas com o silêncio. E o silêncio não é improdutivo. A vida de Bandeira nos mostra a importância do ócio _ de "perder tempo", em uma época em que todos querem "ganhar tempo" _ na produção poética. Benoît consegue dialogar fortemente com essa ideia.

Os lindos versos "Sonhei ter sonhado/ Que havia sonhado", outro exemplo, dialogam com uma estranha foto que flagra um grupo de pessoas _ todas de costas - nas areias da cidade. O que fazem? Onde estão exatamente? O que observam? O que sonham? Grande poeta, Bandeira fez poesia para formular perguntas, para nos perturbar, para descerrar aspectos do mundo que não estamos acostumados a nele incluir. E, mais uma vez, Benoît soube segui-lo nesse caminho. Que não é um caminho fácil, ao contrário, é um caminho que exige uma alma livre e, mais ainda, um olhar liberto. De que? Dos clichês, dos padrões, das imagens viciadas que, infelizmente, poluem nossas paisagens urbanas e nosso tempo. 

Imagens fazem, também, perguntas às palavras. Deslocam seus significados. Arranham sua face. Interferem nas imagens (também imagens, embora "cegas") que as palavras produzem. A foto de um menino, no calçadão de Ipanema, olhando a ressaca marinha confere novos sentidos e novos caminhos para os célebres versos de Bandeira:

"Andei onde deu o vento./ Onde foi meu pensamento". A imagem do garoto, hipnotizado pelo mar imenso, não só responde, de alguma forma, às palavras do poeta, como interfere nas dúvidas que ela carrega, emprestando-lhe um terceiro sentido. Imagem e palavra se complementam, mas também se desafiam e se fertilizam. 

No nosso mundo saturado por imagens tão banais, por luzes tão asfixiantes, por uma claridade que, em vez de nos fazer ver, nos ajuda a cegar, neste mundo as fotografias de Benoît Fournier se mostram ainda mais agudas e mais produtivas. Casadas aos versos esplêndidos de Manuel Bandeira, elas ajudam a traçar imagens divergentes,inesperadas, incomuns de um Rio de Janeiro que, na época do turismo de massa, todos acreditamos conhecer na palma da mão. Mas não conhecemos. Releia Bandeira e esse sentimento se tornará ainda mais perturbador.




José Castello -Jornalista e escritor, colunista do caderno Prosa, de O Globo, autor de "Vinicius de Moraes: O poeta da paixão" (Companhia das Letras, 1993), "Inventário das sombras" (Record, 1999) e "A literatura na poltrona" (Record, 2007), além de "Ribamar" (Bertrand Brasil, 2010, prêmio Jabuti de melhor romance de 2011)

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