A falência da poesia e do
crítico moralizador
Embora o exercício da
crítica literária – que não é senão uma forma de fazer relações sígnicas e de
interlocução parcial a partir de um objeto verbal construído seja sob que
motivação social, individual ou metafísica, enfim, desde os contornos de uma
objetividade em perspectiva ou, ainda, desde uma subjetividade tornada precisa:
o poema mesmo, coesão fundo-forma–, enfim, embora essa crítica me interesse
muito, sei que se trata de um texto segundo, subsidiário, uma forma discursiva
circunscrita a margear os rastros da linguagem do poeta (se não soasse retrô eu
poderia dizer genericamente “do artista”, envolvendo outros modos de expressão,
mas esse comentário se restringe, infelizmente, às coisas da poesia). Talvez me
acusem de reducionismo, mas, encurtando o caminho, prefiro concordar com a
ideia de que a crítica é tão-só mais uma forma de paratexto, ou seja, no
sentido em que, segundo Gérard Genette, “o ‘paratexto’ consiste em toda série
de mensagens que acompanham e ajudam a explicar determinado texto – mensagens
como anúncios, sobrecapa, títulos, subtítulos, introdução, resenhas, e assim
por diante” (apud Umberto Eco). Anoto à margem: o paratexto ajuda tanto a
explicar, como a enublar determinado texto ou evento.
Assim, não pretendo aqui
dar corda à metacrítica, já que se levarmos a sério a crise de nervos da poesia
contemporânea, devemos supor que a crítica que lhe segue embarcou em idêntica
canoa que está a pique. Portanto, mesmo que o metapoema (crítico em relação ao
poema-ele-mesmo) às vezes nos pareça intolerável por sua excessiva
reflexividade, a metacrítica (que põe em causa a crítica-ela-mesma), dentro
dessas condições e, talvez, a contragosto do nosso apetite, também tem a sua
razão de ser. Mas, isto, desde que o herói que a coloca em movimento – o
metacrítico – se aproxime da persona do moralista imaginado por Nietzsche, isto
é, o sujeito (o crítico literário) que entende a moral (os critérios estáveis
da qualidade literária) como algo a ser interrogado, um problema, algo que pode
ser posto em questão. Para nós, o moralizar tout court (o esforço do analista
fiel à Literatura, sim, com maiúscula) soaria imoral; um índice de sua falência
intelectual. De outra parte, entendo que ao falar mais uma vez, ainda que
lateralmente, a propósito de alguns dos dilemas da poesia de agora-agora, não
será estranho que a crítica receba por contiguidade aquilo que ela merece.
A remissão algo nostálgica
a um “senso crítico” e ao “arsenal de qualidades que ele exige”, bem como postular
a “importante reverberação social” provocada pela atividade crítica quando
exercida nesses moldes paradigmáticos já perdidos no tempo, enfim, essa crítica
que “ajuda a fundar civilizações” pode ser interessante, mas, por enquanto, não
é possível. Alguém acrescentará que a crítica não tem a menor obrigação de ser
interessante. Certo, a crítica pode prescindir dessa obrigação, mas não de
outras hipóteses de leitura, onde estão implicadas, inclusive, as condições
culturais do presente. Qual a crítica possível a ser oferecida diante de um
presumido panorama de irrelevância? Há pouco, podia-se defender a ideia de que
o leitor moderno estaria aferrado a um estado, não digo racional, mas, no
mínimo, vigilante relativamente – ou em resposta – a uma “entrega
incondicional” que se lhe cobrava durante o ato de leitura. Não obstante o
conceito de leitura de prazer, o leitor (da alta literatura?) confinaria com o
especialista e não passaria de um árduo degustador dos melhores ou piores
vinhos: estaria apto a enfrentar qualquer desafio. Nas mãos deste sujeito
cultivado, amante da beleza difícil, as supostas tortuosidades da poesia seriam
superestimadas de maneira a fazer mais impressionantes suas qualidades
intelectuais e sua hiperestesia. Esse leitor decisivo teria condições de
mimetizar os ademanes do crítico. Uma sorte de mentor e guia na selva selvagem
da escritura criativa.
Mas esse leitor-modelo,
escada do poeta-crítico, cuja raridade prefigura a sua extinção, não passa de
uma metáfora acadêmica. A literatura, hoje, quer se apresente na web, quer se
fixe no suporte tradicional do livro, não suporta mais uma leitura lenta e
sobrecarregada com as resistências desse leitor difícil e refinado. Resta-nos
essa literatura varejista à caça de leitores-seguidores, mas que prescinde da
releitura com desdém soberano. A capacidade de fazer relações críticas, de pôr
as coisas em relação, no entanto – se leitores, poetas e críticos ainda a
possuem –, se esgarça com rapidez à medida que subsome ante essa pastosa
recepção temperada com a acídia menos burra do que traiçoeira. E todos, no
trato e no traquejo com esse acervo de textos imperitos (inclusive com alguns
que talvez sejam de sua própria lavra), percebem que tal capacidade já se perde
por entre os seus dedos. O ambiente já não faz questão deste tipo de
intervenção problematizadora. Na verdade, o fato de não possuí-la lhes infunde
até um fustigante alívio, pois se sentirão incompetentes, impedidos de emitir
qualquer consideração sobre o valor destas obras suportadas pelo publicitário
de plantão.
Quando a análise sai de
cena o que ocupa o seu lugar? Neste momento em que também a crítica se
apresenta irrelevante, pois a carta de alforria segundo a qual “praticamente
não há mais maus escritores, tampouco escritores geniais” (graças a uma série
de “fatores virtuosos” tais como, entre outros, a democratização da cultura, os
blogs literários, o aquecimento econômico, as pequenas editoras) transforma em
anacronismo o debate que tenta colocar a produção presente numa perspectiva crítica. A mera publicação de um livro por uma editora
competente na publicidade do seu produto confere ao autor a condição de
vencedor. E isso já é o bastante para que a seguir, perante a opinião do
sistema, a obra justifique sua aparição ou consiga dar alguma satisfação no que
concerne à qualidade artística ou literária de que certamente carece, pois do
contrário dispensaria a publicidade indecorosa. De outra parte, quanto mais
poderosa é a casa editorial do escritor, menores são as chances de que qualquer
crítica que venha à tona não seja tachada de revanchista ou invejosa. Parece
não haver argumentos pertinentes — e sequer impertinentes — contra o fait
accompli dessa consagração meramente editorial (resultante da publicação, às
vezes, de duas ou três obras de péssimo nível) com que se tenta calar uma
análise crítica possível.
Se até há pouco tempo a
condição marginal da poesia, relativamente ao prestígio gozado por outras
formas de linguagem no âmbito do embate cultural, obrigava o poeta a assumir
uma postura de maior autonomia crítica que, por sua vez, envolvia também maior
coragem intelectual e um ouvido sempre atento aos transes da diferença e da
fragmentação do verdadeiro, agora, essa situação de patinho feio desencadeou no
ânimo dos envolvidos (pobres vítimas) uma reação histérica cujo efeito gerou um
sistema de autoproteção, uma reserva de mercado branca (ou nem tanto), light,
porque parece ser “do bem”, pois se trata de preservar a poesia, já que, para
todos os efeitos, o poeta “não se vende”. Os prosadores, ao menos, não inventam
a sua relevância, delegam às editoras a prática dessa impostura. Os poetas, por
sua vez, numa espécie de retranca mistificadora e endogâmica (reedição da sua
sempiterna subalternidade junto à “república do poder”), alardeiam a excelência
da própria produção tendo em vista a conquista de uma posição de influência
dentro do sistema literário, ou o reconhecimento circunstante acompanhado das
benesses de praxe, usando para tais fins os meios lícitos e ilícitos
disponíveis. Toda essa competência poeticamente correta de que se ufanam – que,
de resto, mal-esconde a mediocridade que os constitui, pois se comprazem na
autopromoção e no elogio mútuo, reificando um desaprender na repetição, mas cum
laude - é agenciada dentro dos estritos limites do contemporaneamente
tolerável, onde “escolhas afetivas” são rebaixadas a essas formas edulcoradas e
cínicas de comportamento próprias das “redes sociais”. Tudo é só curtição. Seus
interesses coincidem com suas crenças.
Ao contrário de alguns blogueiros
e resenhistas do amiguismo que preferem manter silêncio sobre livros que não
possam elogiar, entendo que a crítica é um gesto de comunicação, portanto, é um
evento em que o leitor está necessariamente implicado. O leitor fecha, ou abre,
dependendo do ponto de partida, o circuito dialógico. E o leitor (mesmo o mais
ingênuo, raivoso ou chato) tem bastante a ver com o processo da significação,
na medida em que, por dever do ofício, a recepção até pode ser transformadora.
À liberdade de criação do autor, podemos propor uma equivalente liberdade de
leitura crítico-seletiva que inere ao desejo de linguagem do leitor. A crítica
não é senão um exercício de leitura. Uma leitura possível. O fracasso embutido
no estilo da revanche.
Ronald Augusto
nasceu em 1961 no estado do Rio Grande do Sul. O escritor atua em
inúmeras áreas: é músico, letrista, ensaísta e possui ainda um trabalho
significativo no âmbito da literatura. Como poeta alcançou
expressividade no cenário nacional e até mesmo mundial, de tal forma que
suas produções foram publicados em revistas literárias, bem como em
antologias, dentre elas destacamos: A razão da Chama, organizada por
Oswaldo de Camargo (1986), a revista americana Callaloo: African
Brasilian Literature: a special issue EUA (1995), a revista alemã
Dichtungsring Zeitschrift für Literatur, e outras.
Um comentário
Um texto muito bem escrito, mas muito cansativo...A poesia contemporânea muito boa, estamos precisando é de apoio.
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