Almas imortais
por Cinthia Kriemler
Diana se levantou irritada
com a repetição do sonho. Há semanas, era visitada por um bando de leoas que
cercava uma mulher jovem, de rosto difuso. A mulher não temia as feras e
caminhava entre elas até algo ou alguém que não se podia ver. Era apenas isso. Mas
acostumada a sonhar com imagens que antecipavam fatos, ela se sentia
incomodada. Saltando da cama para o chuveiro, espantou a noite maldormida.
Tinha um parto para fazer ainda pela manhã, pacientes à tarde e, à noite, o
ensaio geral do seu grupo de balé. Entretida com os pensamentos, vestiu-se com
pressa, guardou a malha, as sapatilhas e saiu sem tomar café
No fim do dia, não se
sentia cansada. Durante o ensaio, entregou-se com paixão aos movimentos. Mas,
de repente, a dor lancinante, a queda e um corre-corre de tutus esvoaçantes.
Depois disso, a cirurgia, uns dias de hospital, e a volta ao apartamento
solitário, afastada de suas atividades por uma licença médica não solicitada e
inegociável de 45 dias.
A decisão de viajar
aconteceu duas semanas depois da operação. A passagem de avião foi colocada
sobre a mesa, junto a um passaporte ansioso e pouco usado. Poucos dias depois,
desaconselhada pelo ortopedista, mancando levemente, sem nenhuma dor e seguida
somente por uma bengala elegante, Diana desembarcou, sozinha, na esplêndida
Atenas.
A chegada à capital dos
helenos fez festa aos olhos; antigo e novo uniram-se docemente na percepção da
viajante. Como só passaria um dia ali, pois ainda tinha que seguir viagem para
Mikonos, seu destino final, Diana visitou poucos lugares: o imponente Templo de
Zeus Olímpico; a igreja ortodoxa de Panaghia Kapnikarea, sólida construção do
século XI; e o Templo de Hefesto, o mais bem preservado do mundo. Talvez na
volta pudesse ficar mais dias em Atenas.
Na manhã seguinte, um mel
divinizado sobre frutas frescas lhe foi servido em despedida. Partiu para as
Cíclades por volta das 11 horas.
Escolher a Grécia nunca
fora um acaso. Quantas vezes tinha fechado os olhos para imaginar ruas
estreitas, abraçadas por casas brancas, ou terraços ensolarados, cortejados
pelo mar. Agora, tudo seria real e de olhos abertos.
Do Porto de Pireus à ilha
de Mikonos foram sete horas de namoro com o Egeu. Um cheiro de antiguidade,
misturado aos sons e rebuliços da Grécia do futuro, esperava por ela. No
caminho até o hotel, uma impressão a comoveu: as casinhas brancas estavam
realmente lá, como pedaços de isopor numa maquete de criança. Árida e seca de
clima, Mikonos exalava emoções. Uma ilha feita para se bater pernas, mesmo uma
perna doente.
Todo fim de tarde, depois
de manquitolar feliz pelas ruelas estreitas que conspiravam histórias, Diana
sentava-se numa taverna e admirava o mar azul-marinho, banhado por um pôr do
sol obsceno. Saboreava a feta, queijo de cabra servido com orégano, e as
mezédes, porções de pão e pastas acompanhadas de temperos, legumes ou frutos do
mar. As iguarias eram servidas em comunhão com o sabor de uva e anis de um bom
copo de ouzo. Mais à noite, buscava as buzukias, casas de espetáculo de música
grega tradicional, nas quais se deixava envolver pelos acordes das melodias
diferentes.
Entretanto, aqueles sonhos
não a tinham abandonado, e essa insistência punha a perder, em parte, o
encantamento da viagem. Depois de uma semana, uma inquietação estranha a
conduziu para além de Mikonos. Caminhou até o porto e de lá, num barco, junto
com outros turistas, seguiu para a ilha-museu de Delos, também conhecida como
Ortígia. Mais uma vez o indescritível Egeu. De olhos fechados, deixou que o sol
queimasse a sua pele durante o trajeto. Sem se importar com os folhetos nem com
as explicações do guia, passou a travessia aspirando o perfume do mar que
invadia os seus pulmões com aromas anciãos. Trinta minutos depois, Delos.
Uma sensação familiar fez
com que Diana se separasse do grupo e começasse a explorar a ilha sozinha. Sem
dor ou cansaço na perna, partiu em direção às ruínas. Extasiada, perdeu-se em
contemplações. Tocou com as pontas dos dedos as ânforas brancas que um dia
armazenaram vinho e mel para o deleite de convivas seculares. Imaginou os
mercados fervilhantes e o templo de Ísis repleto de adoradores. Passou pelas
ágoras, pelo anfiteatro, pelos santuários. Por fim, dirigiu-se à avenida de
terra onde algumas estátuas acocoradas protegiam a ilha. Tinha a intenção de
encerrar ali a visita, e voltar ao barco. Mas ao aproximar-se das esculturas
encravadas no solo, deparou-se com as leoas.
— São elas, são elas! —
gritou, atônita, para o vazio.
Nove magníficas leoas de
mármore, rugindo para o ar parado de Ortígia, vigiavam a eternidade da ilha. Ao
lado, uma placa: “Terraço dos Leões, século VII a.C”.
Descontrolada pelo
acontecimento inesperado, que não compreendia, tropeçou com a perna operada
numa pedra e, novamente, como no dia do ensaio, caiu ao chão com muita dor.
Incapaz de se erguer, sentiu, pouco depois, um abraço frio que a apertou
intensamente. Horrorizada, percebeu a serpente imensa que se enroscava nela,
sufocando-a cada vez mais. Então, vindo do nada, um homem ainda jovem, de uma
beleza impressionante, se atirou ao réptil. Cabelos na altura do ombro, soltos
ao vento, dorso nu, parecia atrair para si todo o sol da ilha. Incansável,
combateu a serpente até que o animal soltou o corpo de Diana.
Ao ver que ela tentava
falar, o desconhecido fechou-lhe primeiro os lábios e depois os olhos com os
dedos longos, fazendo com que adormecesse.
No barco, ao acordar,
Diana viu-se rodeada por alguns turistas e pelo guia. Confusa, perguntou:
— Quem era o homem que me
salvou da serpente? Onde ele está?
— Serpente? — retrucou
alguém, incrédulo.
— Sim, sim, uma serpente
imensa! — continuou Diana.
— Não há serpentes em
Delos, senhorita — afirmou prontamente o guia. — A senhorita desmaiou por causa
do sol e teve um delírio. Deve ter batido o peito numa pedra, quando caiu. Deu
sorte que nós a encontramos logo.
Sem acreditar na hipótese
do guia, mas ao mesmo tempo atordoada, Diana notou, surpresa, que não havia
resquício de dor na perna operada, apenas a cicatriz mediana. No tórax, onde a
serpente se enroscara, uma mancha roxa imensa testemunhava o impossível. Ali,
também, nenhuma dor.
Em Mikonos, rumou direto
para o hotel, vencida pelo cansaço e pelas emoções do dia. Adormeceu bem cedo.
Naquela noite, em sonho, o
jovem da ilha, cercado pelas nove leoas, revelou-se a ela:
Procuro por ti a cada
geração, rainha das feras. As leoas-guardiãs de minha ilha pressagiaram a tua
divindade e te reconduziram a mim.
Minha irmã, eu te
reconheço da água compartilhada em que nos deitamos no útero de Leto. Tu,
Ártemis, és também Diana, Luna e Selene, deusa da lua, dos nascimentos, dos
bosques e da dança. És a metade lançada por Ilítia ao solo flutuante de Delos,
para preceder-me no caminho até a vida.
Reconheces-me do abrigo
côncavo em que estivemos a nos olhar com a cumplicidade dos fraternos? Em mim,
Apolo, deus do sol, das profecias e da cura, enxerga o pequeno varão que
aparaste em teus braços naquele duplo livramento.
O que duvidas ter
acontecido, aconteceu. Por ti, como antes por Leto, destruí novamente a píton.
E cumpriu-se, mais uma vez, o oráculo: a ninguém é permitido morrer ou nascer
em Delos.
Parte. Volta ao mundo que
deitou para dormir a tua memória dos tempos. E quando estiveres dançando para
os seres do hoje, lembra-te que, igualmente nós, como sol e lua, eternamente
nos encontraremos em danças de chegada ou despedida.
Diana acordou. E Ártemis
chorou em toda a sua formosura.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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2 comentários
Adorei! Maravilhoso conto! Amo Mitologia Grega! Amo tudo o que escreve!Sensacional o desfecho! Beijos
Obrigada, Maria Silvia!
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